sábado, 13 de setembro de 2014

Identificação, Ásabiyah e Cultura: Ibn Khaldun e Freud...

Diz-se que, em menor ou maior grau, as culturas sempre trocaram entre si – e se fizeram desta e nesta troca –, nos parece indubitável que o caráter da troca no mundo contemporâneo, por efeito e eficiência dos novos meios eletrônicos de comunicação, seja sem precedentes. Em um momento no qual diversos mundos culturais são, cada vez mais, forçados a confrontar-se com a presença e fala dos demais é oportuno realizar trabalhos em que se objetive encontrar o sentido e o alcance das diferenças e semelhanças.

Sem dedicar o presente estudo a este fenômeno geralmente chamado de “globalização”, esperamos, à guisa de introdução, situar com estas palavras o nosso trabalho neste movimento. É daí que advem sua utilidade, se houver alguma.

Aproximar de alguma forma dois pensadores tão distantes, como Ibn Khaldun e Freud, não é propriamente o objetivo central deste estudo senão encontrar um bergantim[1] qualquer que nos permita navegar entre duas formas distintas de interpretar o mesmo fenômeno, sem reduzir uma à outra, ao mesmo tempo em que deixamos o desdobramento e o valor heurístico disto para cada tradição à imaginação do leitor.

Se Freud pensava o estar no mundo e o fazer-se humano dentro de uma dimensão que não se restringe ao natural ou biológico, mas parte deste e vai além, em um movimento de entrada na cultura, então, pensar um sujeito que respira outro padrão civilizatório – padrões familiar, econômico, religioso e etc - que não o ocidental nos força a abrir mão de um etnocentrismo qualquer e, sem cair no relativismo absoluto, resgatar a dimensão humana da diferença. Nos obriga, inclusive, a levantar a hipótese – que não será trabalhada nesta monografia – de que a formação psíquica em outras condições culturais se dê que não como estudamos no Ocidente. 

Portanto, o oportunismo e a esperança deste trabalho é somar-se – sob o viés da Psicanálise - ao montante de elocubrações sobre o momento curioso em que vivemos.

Como em todo campo fecundo de saber a Psicanálise é ampla e ramificada, a tarefa de convergência conceitual entre as várias correntes pode facilmente tornar-se tão improdutiva quanto desnecessária. Nos parece desejável respeitar os diversos discursos para que se dê margem às sutilezas da apreensão de cada um sem reduzi-lo aos demais.

Como os movimentos religiosos, as diversas correntes psicanalíticas por vezes proclamam a posse de uma interpretação legítima daquele texto em torno do qual o grupo supostamente encontraria sua fundação. A luta em nome da causa verdadeira nos parece humana o suficiente ao ponto de ser caricatural e triste, pois em detrimento das demais interpretações, meras heresias que distorceriam o significado original da intuição do mestre, esvaziam a própria obra fundadora. Não daremos ouvidos aos aiatolás e mulás da Psicanálise, nem pretenderemos que a leitura adotada seja a verdade escondida nos textos. 

No desenvolvimento, o primeiro capítulo esboça a vida de Ibn Khaldun, seu contexto histórico e o conceito de ‘asabiyah, que será central neste trabalho. Pretendemos mostrar seu pensamento vinculado à época e biografia do autor. Já no segundo capítulo demarcamos pontos de encontro e desencontro entre as tradições ocidental e islâmica. O terceiro traz o fundamental da leitura freudiana da cultura e fenômenos de massa demarcando suas convergências e várias divergências em relação ao conceito de ‘asabiyah. Em seguida, se o leitor manteve sua paciência, encontrará algumas considerações finais. Que seja, pois como diz o velho ditado popular árabe: “besouro em casa é sultão”.

Capítulo I

Se a função de um conceito é apreender uma face de um fenômeno em estudo e, através de junções com outros conceitos pertinentes, deixar aparecer uma certa inteligibilidade deste fenômeno que consolide uma teoria, podemos sugerir que o conceito de ‘asabiyah na obra de Ibn Khaldun - de acordo com Simon (2002) – fala de uma perplexidade frente a um fenômeno específico que o filósofo árabe soube se deparar e elaborar. Assim, menos para definir a delineação ôntica do conceito do que resgatar sua dimensão provocativa, tentamos esboçar como ele se inscreve nas vivências, mesmo que gerais, do autor.

Abu Zaid ‘Abd Ar-rahman ibn Muhammed ibn Khaldun Wali Ad-din At-tunisi Al-hadrami Al-ishbili Al-maliki, mais conhecido como simplesmente Ibn Khaldun, nasceu no dia 1° do mês islâmico de ramadão de 732, que corresponde a 05 de maio de 1332 no calendário gregoriano, em Tunis, no Norte da África. Embora sua família tenha emigrado de Sevilha quando da conquista cristã, chegando no Norte da África por volta de 1235, era originário de Hadramaut[2], logo, sua origem mais provável era árabe (como ele mesmo atestava).

Aos 17 anos perde seus pais por conta de uma peste que assolou Tunis e, aos 20 anos, assume uma posição na corte local como escrivão do Sultão Hafsida Ishaq. Dá início a uma longa e turbulenta carreira que, no entanto, lhe outorgaria notoriedade.

Em 1350, quando os Hafsidas reconquistaram Tunis, muitos de seus professores retornaram ao Marrocos. É imbuído do desejo dar continuidade aos seus estudos que abandona seu cargo em 1354, partindo rumo à corte marinida em Fez. Lá, assume a posição de muwaqi com certa indignação, pois nenhum de seus antepassados trabalhara neste cargo.

Manteve contato com o soberano de de Bougie, um Hafside, a despeito dos conflitos entre a corte para qual trabalha e os Hafsidas. Pagou caro, aprisionado em 1357 teve que esperar até o ano seguinte para vir a ser libertado em decorrência da morte do sultão que ordenara seu calabouço. Este fôra assassinado e, na luta pela sucessão, Ibn Khaldun apoia aquele que realmente se tornaria o próximo Sultão de Fez: Abu Salim.

Investido de poder, Abu Salim agracia Ibn Khaldun oferecendo-lhe o cargo de secretário. Mas, novamente deixará sua posição devido a intrigas na corte, partindo desta vez para Granada. Destacar-se-á nesta cidade, sendo que, atraído pela oferta da prestigiosa função de hajib, estabeler-se-á em Bougie em 1365.

O curso dos eventos, entretanto, não foi favorável para Ibn Khaldun e os ventos da instabilidade política, que sopravam fortemente àquela época nesta região, se fizeram marcantes. O soberano é destituído por seu primo, e como este não via em Ibn Khaldun um aliado, fez o filósofo árabe decidir partir para Tlemcen em 1368.

Os próximos anos não serão mais calmos e Ibn Khaldun passará por um grande número de cortes e tribos. Contudo, em 1375 ele decide se isolar para dedicar-se por quatro anos à elaboração de trabalhos científicos. É nesta época que escreve sua obra mais importante – muqaddimah.

Decidido a cumprir sua obrigação religiosa enquanto muçulmano, peregrina para Meca. Sua rota passa pelo Egito e, impedido de continuar imediatamente a viagem, visita o Cairo. Lá, adia sua peregrinação e se estabelece como professor. Em pouco tempo recebe uma posição elevada. Perde neste período sua família em um naufrágio, justamente quando vinham ao Egito juntar-se a ele. Consternado, abandona o posto em 1385 e se recolhe na fé. Em 1387 conclui sua peregrinação inacabada a Meca e retorna ao Cairo, reassumindo o magistério. Mantém, então, uma vida pública sem grandes agitações para a época.

Por volta de 1400 os mongóis, sob a liderança de Timur, invadem a Síria. Ibn Khaldun parte junto ao Sultão para Damasco. Este ver-se-á forçado a retornar ao Cairo mas aquele permanecerá em sua missão. Negociou com Timur, que lhe encomenda um texto descritivo sobre o Norte da África. Após este episódio retorna ao Cairo e assume, ainda, o cargo de qadi(jurisconsulto) mais uma vez. Ao todo terá exercido este cargo seis vezes durante toda sua vida quando morre em 16 de março de 1406, ou 25 de Ramadão de 808. 

Com uma vida pública de atividades nas cortes das turbulentas da África do Norte e Andalusia, Ibn Khaldun participou dos altos e baixos de vários regimes aristocráticos. Se por um lado sua vida pública reflete a instabilidade da região, por outro, é no registro de uma teorização de sua experiência pessoal que ele fala de questões que alcançam um além do imediatismo dos acontecimentos (Simon, 2002)"... Para continuar a leitura, clique aqui...

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