domingo, 18 de março de 2018

A marcha da insensatez: redes sociais estão destruindo a sociedade civil


Alguém já disse que excesso de informação não representa uma plena democracia, pelo contrário: intensifica a falta dela... O texto abaixo retrata a forma desordenada que a redes sociais estão conduzindo as sociedades modernas:

"Umberto Eco, escritor e filósofo: “Os imbecis agora têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel...

Professor de Stanford, Niall Ferguson afirma que a polarização nas redes sociais está levando a sociedade a um estado de declínio que só pode ser qualificado de ‘incivilidade’

Umberto Eco (1932-2016) disse que as redes sociais possibilitaram o surgimento — e quiçá uma hegemonia — de uma “legião de imbecis”. Antes, concentrados em bares, tomando vinho ou cerveja, “falavam sem prejudicar a coletividade. Normalmente, eles [os imbecis] eram imediatamente calados, mas agora eles têm o mesmo direito à palavra de um Prêmio Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador da verdade”. O escritor e filósofo italiano sugere que os jornais filtrem de maneira rigorosa as informações divulgadas nas redes sociais, porque, no geral, não são confiáveis.

O historiador escocês Niall Ferguson — autor de livros seminais sobre a Primeira Guerra Mundial e a Segunda Guerra Mundial, além de obras sobre a decadência do Ocidente (é autor de um livro heterodoxo no qual apresenta a tese de que o colonialismo não foi lucrativo para a Inglaterra. Trata-se de “Império — Como os Britânicos Fizeram o Mundo Moderno”, Crítica, 448 páginas, tradução de Marcelo Musa Cavallari) — segue o mesmo caminho de Umberto Eco, acrescentando sua própria interpretação. O professor de Stanford afirma que a polarização excessiva nas redes sociais está levando a sociedade “a um estado de declínio que só pode ser qualificado de “incivilidade”.

Suas interpretações foram colhidas pelos repórteres Ana Paula Ribeiro e Gustavo Schimitt, de “O Globo”. “A minha preocupação hoje é que a sociedade civil foi tão erodida pelo advento das redes sociais que não podemos mais falar em sociedade civil. Os Estados Unidos se tornaram uma sociedade não civilizada. A polarização se tornou um veneno. Eu me pergunto se a civilização não está se tornando algo diferente, em uma não-civilização ocidental”, critica Niall Ferguson. No livro “A Grande Degeneração — A Decadência do Mundo Ocidental” (Planeta do Brasil, 128 páginas, tradução de Janaina Marcantonio), o autor não arrola as redes sociais como um dos fundamentos da ruína do Ocidente.Dirigentes do Facebook e do Twitter não estão, sugere Niall Ferguson, minimamente preocupados com a extensão do dano que está acontecendo no tecido social. Quanto mais barbárie, produzida ou não pela tensão ideológica, mais pessoas circulam pelas redes, aumentando seus ganhos financeiros. “Uma das consequências das redes sociais gigantes é a polarização. As pessoas se agrupam em grupos de esquerda ou de direita. O que notamos é um maior engajamento em tuítes de linguagem moral, emocional e até obscena. As redes estão polarizando a sociedade, produzindo visões extremistas e fake news”, frisa o historiador.

Há quem compare Donald Trump a Ronald Reagan, a Bush pai e a Bush filho. Apesar das limitações dos três, notadamente dos dois Bush — Reagan revelou-se um estadista muito superior ao que esperava a intelligentsia internacional —, Trump é muito mais despreparado. Sua visão de política global é unicamente americana, não incorpora nem parte das ideias de seus “aliados”. Império que se comporta tão-somente como nação isolada, como Estado fechado, não tem futuro, às vezes nem presente. Por que um político com escassa visão mundial se tornou presidente dos Estados Unidos? É provável que as redes tenham contribuído para a vitória de Trump. Pode-se não gostar de Hillary Clinton, mas não há dúvida de que é mais qualificada do que o presidente republicano. A vitória de Trump resulta da hegemonia do provincianismo dos Estados Unidos — país que é, a um só tempo, cosmopolita e caipira.

A rigor, Niall Ferguson não discute isto, mas sublinha que a exposição de Trump era muito maior do que a de Hillary Clinton — inclusive em Estados considerados democratas. Tudo indica, portanto, que as redes sociais funcionaram, sobretudo para o candidato republicano. Niall Ferguson afirma que os analistas de campanhas eleitorais devem ficar atentos às redes sociais. Porque o comportamento dos candidatos, atraindo (ou não) seguidores e engajamento, pode ser decisivo no resultado do pleito.
Insensatez

Eugênio Bucci, da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP, apresenta uma tese ligeiramente diversa da de Niall Ferguson. O professor diz que, mais do que incivilidade, a polarização está gerando insensatez nas redes sociais. “A tendência é que discursos exacerbados sejam favorecidos nas redes. E isso vai produzindo o efeito bolha: as pessoas que fazem parte delas dentro das redes são governadas por algoritmos e não pelo discernimento racional. O que é um paradoxo, porque tudo o que o Brasil precisa neste momento é de sensatez. Mas parece que os ventos favorecem a insensatez”, afirma o mestre. Não é uma visão apocalíptica, mas também não é integrada. É moderada.

Eugênio Bucci: contrariando Ferguson, o professor da USP aposta mais em insensatez do que em incivilidade

Ao contrário do que diz Niall Ferguson, mais apocalíptico, Eugênio Bucci sugere cautela, pois não aposta que as redes sociais vão corromper a democracia no Ocidente. “As redes não podem ser definidas como mal absoluto. É bom lembrar que também representam um arejamento das democracias. E foram responsáveis por imprimir nova dinâmica nas relações entre a sociedade e o Estado”, pontua.

O professor Fabio Malini, coordenador do Laboratório de estudos sobre Internet e Cultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), corrobora a tese de Niall Fergunson. A incivilidade já predomina no Brasil, sobretudo no comportamento político (o que vai além do comportamento dos políticos). “A polarização é corriqueira na política. Mas, nas redes sociais, tem um modelo específico de atenção das pessoas que influi nisso. A proximidade tem sido a tônica de como algoritmos são construídos fortalecendo bolhas ideológicas, onde há atitudes impulsivas, que redundam em decisões emocionais.”

As redes sociais são incontornáveis, quer dizer, vão continuar (goste-se ou não, são positivas). O mais provável é que, após uma primeira fase como terreno da barbárie, retome o caminho civilizatório, abrindo oportunidade ao debate entre indivíduos que pensam de maneiras diferentes a respeito de política, economia, cultura e comportamento. Isto, claro, numa perspectiva otimista. No momento, tornaram-se frigoríficos de ideias, de comportamentos e de pessoas. Talvez não seja possível piorar"...

Sem educação, os homens vão matar-se uns aos outros



António Damásio - foto Rui Gaudêncio
"O neurocientista António Damásio advertiu que é necessário “educar massivamente as pessoas para que aceitem os outros”, porque “se não houver educação massiva, os seres humanos vão matar-se uns aos outros”.


O neurocientista português falou no lançamento do seu novo livro A Estranha Ordem das Coisas, na Escola Secundária António Damásio, em Lisboa, onde ele defendeu perante um auditório cheio que é preciso educarmo-nos para contrariar os nossos instintos mais básicos, que nos impelem a pensar primeiro na nossa sobrevivência.

“O que eu quero é proteger-me a mim, aos meus e à minha família. E os outros que se tramem. […] É preciso suplantar uma biologia muito forte”, disse o neurocientista, associando este comportamento a situações como as que têm levado a um discurso anti-imigração e à ascensão de partidos neonazis de nacionalismo xenófobo, como os casos recentes da Alemanha e da Áustria. Para António Damásio, a forma de combater estes fenômenos “é educar maciçamente as pessoas para que aceitem os outros”.

Em ” A Estranha Ordem das Coisas”(editora: Temas e Debates), Damásio volta a falar da importância dos sentimentos, como a dor, o sofrimento ou o prazer antecipado.


“Este livro é uma continuação de O Erro de Descartes, 22 anos mais tarde. Em ‘O Erro de Descartes’ havia uma série de direções que apontavam para este novo livro, mas não tinha dados para o suportar”, explicou António Damásio, referindo-se ao famoso livro que, nos finais da década de 90, veio demonstrar como a ausência de emoções pode prejudicar a racionalidade.

O autor referiu que aquilo que fomos sentindo ao longo de séculos fez de nós o que somos hoje, ou seja, os sentimentos definiram a nossa cultura. António Damásio disse que o que distingue os seres humanos dos restantes animais é a cultura: “Depois da linguagem verbal, há qualquer coisa muito maior que é a grande epopeia cultural que estamos a construir há cem mil anos.”

O neurocientista acredita que o sentimento – que trata como “o elefante que está no meio da sala e de quem ninguém fala” – tem um papel único no aparecimento das culturas. “Os grande motivadores das culturas atuais foram as condições que levaram à dor e ao sofrimento, que levaram as pessoas a ter que fazer alguma coisa que cancelasse a dor e o sofrimento”, acrescentou António Damásio.

“Os sentimentos, aquilo que sentimos, são o resultado de ver uma pessoa que se ama, ou ouvir uma peça musical ou ter um magnífico repasto num restaurante. Todas essas coisas nos provocam emoções e sentimentos. Essa vida emocional e sentimental que temos como pano de fundo da nossa vida são as provocadoras da nossa cultura.”

No livro o autor desce ao nível da célula para explicar que até os microrganismos mais básicos se organizam para sobreviverem. Perante uma plateia com centenas de alunos, o investigador lembrou que as bactérias não têm sistema nervoso nem mente mas “sabem que uma outra bactéria é prima, irmã ou que não faz parte da família”.

Perante uma ameaça, como um antibiótico, “as bactérias têm de trabalhar solidariamente”, explicou, acrescentando que, se a maioria das bactérias trabalha em prol do mesmo fim, também há bactérias que não trabalham. “Quando as bactérias (trabalhadoras) se apercebem que há bactérias vira-casaca, viram-lhes as costas”, concluiu o neurocientista, sublinhando que estas reações são ao nível de algo que possui “uma só célula, não tem mente e não tem uma intenção”, ou seja, “nada disto tem a ver com consciência”.

E é perante esta evidência que o investigador conclui que “há uma coleção de comportamentos – de conflito ou de cooperação – que é a base fundamental e estrutural de vida”.

Durante o lançamento do livro, o investigador usou o exemplo da Catalunha para criticar quem defende que o problema é uma abordagem emocional e não racional: “O problema é ter mais emoções negativas do que positivas, não é ter emoções.”

“O centro do livro está nos afetos. A inteira realidade dos sentimentos e a ciência dos sentimentos e do que está por baixo dos sentimentos. O sentimento é a personagem central. É também central uma coisa que me preocupa muito, o presente estado da cultura humana. Que é terrível. Temos o sentimento de que não está apenas a desmoronar-se, como está a desmoronar-se outra vez e de que devemos perder as esperanças visto que da última vez que tivemos tragédias globais nada aprendemos. O mínimo que podemos concluir é que fomos demasiado complacentes, e acreditamos, especialmente depois da Segunda Guerra Mundial, que haveria um caminho certo, uma tendência para o desenvolvimento humano a par da prosperidade. Durante um tempo, acreditamos que assim era e havia sinais disso”

* Leia a instigante entrevista de António Damásio “Quando me perguntam qual é o maior cientista de sempre, respondo: na minha área, é Shakespeare”. acessando" AQUI!

quinta-feira, 15 de março de 2018

Descobertas Contestam Hegemonia De Darwin E Recuperam Lamarck

..."Kevin Laland – Características adquiridas em vida afetam genética e evolução das espécies, escreve professor escocês.

Autor afirma que pesquisas recentes indicam que a evolução das espécies é um fenômeno mais complexo do que se imaginava e não pode ser explicado apenas pela seleção natural. Defensor de uma teoria alternativa (a síntese evolutiva estendida), ele argumenta que a ciência tem dificuldade para incorporar novas ideias.

Quando pesquisadores da Universidade Emory, em Atlanta, treinaram camundongos para sentir medo do cheiro de amêndoas (aplicando choques elétricos acompanhados pelo odor), eles descobriram, consternados, que os filhos e netos desses camundongos temiam espontaneamente o mesmo cheiro. Isso não deveria acontecer.

Gerações de estudantes sempre souberam que é impossível herdar características adquiridas. Um camundongo não deveria nascer com algo que seus pais aprenderam durante a vida, assim como aquele que perde a cauda em um acidente não dá à luz filhotes sem cauda.

Se você não é biólogo, pode ser perdoado por estar confuso com o estado da ciência evolutiva. A biologia evolutiva moderna data de uma síntese que emergiu nas décadas de 1940 a 1960, casando o mecanismo da seleção natural de Charles Darwin com as descobertas de Gregor Mendel sobre como os genes são herdados.

A visão tradicional e ainda dominante reza que as adaptações —desde o cérebro humano até a cauda do pavão— são integral e satisfatoriamente explicadas pela seleção natural (e a subsequente transmissão de características aos descendentes).

Porém, com a chegada de ideias novas vindas da genômica, epigenética e biologia do desenvolvimento, a maioria dos especialistas em evolução concorda que seu campo se encontra em transformação. Boa parte dos novos dados indica que a evolução é algo mais complexo do que presumíamos.

Alguns biólogos evolutivos, entre os quais me incluo, têm pedido uma caracterização mais ampla da teoria evolutiva, conhecida como síntese evolutiva estendida (SEE). Uma questão central é saber se o que ocorre com organismos durante sua vida —seu desenvolvimento— pode exercer papel importante e até agora imprevisto na evolução.

A visão ortodoxa estabelece que processos do desenvolvimento são em grande medida irrelevantes para a evolução, mas a SEE os considera cruciais. Protagonistas com credenciais respeitadas surgem de ambos os lados do debate; professores de universidades tradicionais e membros de academias nacionais discordam completamente quanto aos mecanismos da evolução. Algumas pessoas até se perguntam se há possibilidade de uma revolução.

Em seu livro “Da Natureza Humana” (1978), o biólogo evolutivo Edward O. Wilson afirmou que a cultura humana está presa a uma coleira genética. Foi uma metáfora controversa por duas razões. Primeiro, como veremos, porque também é verdade que a cultura segura os genes em uma coleira. Em segundo lugar, embora deva haver uma propensão genética ao aprendizado cultural, poucas diferenças culturais podem ser explicadas por diferenças genéticas subjacentes.

Mesmo assim, a frase tem potencial explicativo. Imagine uma pessoa (os genes) caminhando enquanto controla um cão forte (a cultura humana). A trajetória (o caminho da evolução) reflete o resultado da disputa entre a pessoa e o cão.

Agora imagine essa pessoa tentando controlar vários cães, presos por coleiras de comprimentos diferentes e puxando em direções distintas. Todos esses puxões representam a influência de fatores do desenvolvimento, incluindo epigenética, anticorpos e hormônios transmitidos pelos pais, além do legado ecológico e da cultura que eles deixam a seus descendentes.

Uma pessoa lutando para passear com os cães é uma boa metáfora para ilustrar como a SEE visualiza o processo adaptativo. Isso requer uma revolução na evolução?
REVOLUÇÃO CIENTÍFICA

Antes de podermos oferecer uma resposta, precisamos examinar como funciona a ciência. As melhores autoridades aqui não são biólogos, mas filósofos e historiadores da ciência. O livro “A Estrutura das Revoluções Científicas” (1962), de Thomas Kuhn, popularizou a ideia de que as ciências mudam por meio de revoluções no entendimento. Essas mudanças de paradigma ocorreriam depois de uma crise de confiança na velha teoria, que aconteceria pelo acúmulo de dados conflitantes.

Há também Karl Popper e sua conjectura de que teorias científicas não podem ser comprovadas, mas podem ser falsificadas.

Considere a hipótese “todas as ovelhas são brancas”. Popper afirma que nenhuma quantidade de constatações condizentes com a hipótese poderia atestar sua correção, pois nunca estaria descartada a possibilidade de dados conflitantes surgirem no futuro. Inversamente, a observação de uma única ovelha negra desmentiria a hipótese de uma vez por todas. Segundo Popper, cientistas deveriam realizar experimentos críticos com potencial de desmentir suas teorias.

Embora muito difundidas, as ideias de Kuhn e Popper não estão a salvo de controvérsia entre filósofos e historiadores da ciência. O pensamento contemporâneo nesses campos é mais bem captado por Imre Lakatos em “The Methodology of Scientific Research Programmes” (a metodologia de programas de pesquisa científica, 1978): “A história da ciência refuta tanto Popper quanto Kuhn. Examinados de perto, tanto os experimentos cruciais popperianos quanto as revoluções kuhnianas se revelam mitos”.

Os argumentos de Popper podem fazer sentido, mas não mostram como a ciência funciona no mundo real. Observações científicas são suscetíveis a erros de medição; pesquisadores são humanos e se apegam às suas teorias; ideias científicas podem ser muito complexas. Tudo isso torna a avaliação de hipóteses científicas uma tarefa confusa.

Em vez de aceitar que nossas hipóteses podem estar erradas, contestamos a metodologia (“a ovelha não é negra —o problema está nos instrumentos”) ou a interpretação (“a ovelha só está suja”), ou então adaptamos nossa hipótese (“eu estava falando de raças domesticadas, não de carneiros selvagens”). Lakatos descreve essas modificações ou ressalvas como hipóteses auxiliares; cientistas as propõem para proteger suas ideias principais, evitando que sejam rejeitadas.

Esse tipo de comportamento se manifesta claramente em discussões científicas sobre a evolução.

Considere a ideia de que características adquiridas ao longo da vida podem ser transmitidas para a próxima geração. Ela ganhou força no início do século 19 graças ao biólogo Jean-Baptiste Lamarck, que a usou para explicar a evolução das espécies.

Há muito tempo, porém, entende-se que a hipótese foi desmentida por experimentos —a ponto de, nos círculos evolutivos, o termo “lamarckiano” carregar conotação depreciativa. A ideia mais largamente aceita é a de que as experiências dos pais não afetam as características de sua prole.

EPIGENÉTICA

Só que elas afetam, sim. O modo como os genes se expressam para produzir o fenótipo de um organismo —as características reais que o organismo acaba tendo— é afetado por substâncias químicas que se ligam a eles. Tudo, desde a dieta até a poluição do ar ou o comportamento dos pais, pode influir sobre o acréscimo ou a retirada dessas marcas químicas, que ligam ou desligam genes.

Geralmente, esses acréscimos ditos epigenéticos são removidos durante a produção de espermatozoides e óvulos, mas alguns são transmitidos à próxima geração, junto com os genes. Isso é conhecido como herança epigenética, e mais e mais estudos vêm confirmando que ela de fato ocorre.

Voltemos aos camundongos que têm medo de amêndoas. Foi a herança de uma marca epigenética transmitida nos espermatozoides que levou a nova geração a adquirir um medo herdado.

Em 2011, outro estudo extraordinário relatou que, expostos a um vírus nocivo, alguns vermes reagiram produzindo substâncias químicas que desativaram o vírus. Surpreendentemente, gerações posteriores herdaram epigeneticamente essas substâncias, através de moléculas reguladoras (conhecidas como pequenos RNAs).

Hoje existem centenas de estudos semelhantes, muitos publicados nos periódicos científicos mais prestigiosos. Biólogos debatem se a herança epigenética é lamarckiana ou apenas se assemelha superficialmente a isso, mas não há como fugir do fato de que a herança de características adquiridas ocorre.

Pelo raciocínio de Popper, uma única demonstração experimental de herança epigenética –como uma única ovelha negra– deveria bastar para convencer os biólogos evolutivos de que ela é possível. A maioria dos biólogos evolutivos, contudo, não correu para mudar suas teorias.

Em vez disso, como Lakatos previu, estamos propondo hipóteses auxiliares que nos permitem conservar as ideias que defendemos há muito tempo. Essas ideias incluem a de que herança epigenética é rara, não afeta características importantes, está sob controle genético e é instável demais para explicar a disseminação de características por meio da seleção.

Infelizmente para os tradicionalistas, nenhuma dessas tentativas de minimizar ou relativizar a importância da herança epigenética parece ser digna de crédito. Hoje é sabido que a herança epigenética está amplamente presente na natureza; mais e mais exemplos aparecem a todo momento.

Ela afeta características funcionalmente importantes como o tamanho de frutos, a época do florescimento e o crescimento de raízes de plantas –e, embora apenas uma pequena parte das variantes epigenéticas seja de natureza adaptativa, isso também é verdade em relação à variação genética, de modo que não chega a ser um argumento para desacreditar a herança epigenética.

Não há mais dúvida de que a herança epigenética nos obriga a enxergar a evolução de outra forma.

CULTURA

A epigenética é apenas parte da história. Através da cultura e da sociedade, todos herdamos conhecimentos e habilidades adquiridos por nossos pais. Os biólogos evolutivos aceitam essa ideia há pelo menos um século, mas até recentemente considerava-se que isso fosse restrito aos humanos.

Essa posição, entretanto, deixou de ser defensável: criaturas de todo o reino animal aprendem socialmente sobre alimentação, predadores, comunicação, migração, escolhas de parceiros e de locais de reprodução. Centenas de estudos experimentais já demonstraram a aprendizagem social em mamíferos, aves, peixes e insetos.

Entre os dados mais convincentes estão estudos em que filhotes de chapim-real foram adotados por chapins-azuis, e vice-versa. Quando foram criadas por outras espécies, essas aves modificaram vários aspectos de seu comportamento para assemelhar-se a seus pais adotivos (incluindo a altura das árvores em que se alimentavam, as presas que buscavam, seus cantos e até sua escolha de parceiro).

Presumia-se que as diferenças comportamentais entre as duas espécies eram genéticas, mas ficou claro que muitas delas constituíam tradições culturais.

As culturas animais podem se conservar por períodos surpreendentemente longos. Resquícios arqueológicos mostram que chimpanzés usam ferramentas de pedra para abrir castanhas há pelo menos 4.300 anos.

No que diz respeito à herança epigenética, porém, seria um equívoco supor que a cultura animal precisa exibir estabilidade como a genética para ter significado evolutivo. Ao longo de uma única temporada de acasalamento podem se desenvolver modismos nas características que os indivíduos acham atraentes em seus parceiros.

Isso já foi demonstrado experimentalmente em moscas de frutas, peixes, aves e mamíferos, e modelos matemáticos mostram que esse “processo de cópia da escolha de parceiros” pode afetar fortemente a seleção sexual. Nessa linha, acredita-se que as variadas e culturalmente aprendidas tradições das orcas na busca de alimentos –em que grupos diferentes se especializam em certos tipos de peixes, focas ou golfinhos– estejam levando-as a se dividir em várias espécies.

É claro que a cultura chega ao auge em nossa própria espécie, tendo sido fartamente comprovado que os hábitos culturais são fonte importante de seleção natural de nossos genes.

A criação de gado e o consumo de leite geraram a seleção de uma variante genética que aumentou a lactase (enzima que metaboliza leite e derivados), enquanto dietas agrícolas à base de amido favoreceram o aumento da amilase (enzima que decompõe o amido).

Toda essa complexidade não se concilia com uma visão estritamente genética da evolução adaptativa, fato que muitos biólogos reconhecem. Em vez disso, aponta para um processo evolutivo em que genomas (ao longo de centenas de milhares de gerações), modificações epigenéticas e fatores culturais herdados (ao longo de várias, possivelmente dezenas ou centenas de gerações) e efeitos parentais (ao longo de uma só geração) coletivamente influem sobre a adaptação dos organismos.

Esses tipos de herança extragenética conferem aos organismos a flexibilidade de se ajustarem rapidamente aos desafios ambientais, arrastando as mudanças genéticas em sua esteira –um pouco como um bando de cães agitados.

RESISTÊNCIA

Apesar do interesse suscitado por todos os novos dados, é improvável que eles desencadeiem uma revolução na evolução, pela simples razão de que a ciência não funciona assim –ao menos não a ciência evolutiva. Como os experimentos críticos de Popper, as mudanças de paradigma kuhnianas são mais próximas de mitos que da realidade.

Olhando para a história da biologia evolutiva, não se vê nada assemelhado a uma revolução. Mesmo a teoria de Charles Darwin levou cerca de 70 anos para ser amplamente aceita; na virada do século 20, ainda era vista com grande ceticismo. Nas décadas seguintes, novas ideias surgiram, foram avaliadas pela comunidade científica e pouco a pouco integradas ao conhecimento preexistente. A biologia evolutiva se atualizou sem passar por grandes períodos de crise.

A mesma coisa se aplica ao presente. A herança epigenética não desmente a herança genética, mas mostra que esta é apenas um entre vários mecanismos pelos quais características são herdadas.

Não conheço nenhum biólogo que queira rasgar os livros didáticos ou jogar fora a seleção natural. A questão é saber se queremos ampliar nosso entendimento sobre as causas da evolução e se isso modifica nossa visão do processo como um todo. Nesse ponto, o que está acontecendo é ciência normal.

Por que, então, biólogos evolutivos tradicionais se queixam dos radicais evolutivos equivocados que defendem uma mudança de paradigma? Por que jornalistas escrevem artigos sobre cientistas que estariam pedindo uma revolução na biologia evolutiva? Se ninguém de fato quer uma revolução, e se revoluções científicas raramente ocorrem, a que se deve a polêmica?

A resposta a essas perguntas traz um insight fascinante sobre a sociologia da biologia evolutiva.

Revolução na evolução é uma descrição equivocada do que está acontecendo –um mito propagado por uma aliança improvável de evolucionistas conservadores, criacionistas e imprensa. Não duvido que existam alguns radicais evolutivos revolucionários, mas a imensa maioria dos pesquisadores que buscam uma síntese evolutiva estendida é formada por biólogos evolutivos que trabalham duro.

Todos sabemos que o sensacionalismo vende jornais, e artigos anunciando uma grande reviravolta vendem bem. Criacionistas e defensores do design inteligente também alimentam essa impressão exagerando as diferenças de opinião entre evolucionistas e criando a falsa impressão de turbulência no campo da biologia evolutiva.

O que é mais surpreendente é como biólogos conservadores jogam a carta “estamos sendo atacados!” contra seus colegas evolucionistas. Retratar adversários intelectuais como extremistas ou dizer às pessoas que se está sendo atacado são truques retóricos usados desde sempre para ganhar discussões ou conquistar lealdades.

Sempre associei esse tipo de prática à política, não à ciência, mas hoje percebo que fui ingênuo. Os cientistas também têm carreiras e legados em jogo; também lutam por recursos, poder e influência.

Receio que o discurso dos tradicionalistas esteja produzindo efeitos negativos, criando confusão e, sem querer, alimentando o criacionismo pelo fato de fomentar divergências exageradas. Muitos cientistas respeitados sentem a necessidade de uma mudança na biologia evolutiva. Não é possível descartar todos eles como elementos à margem da visão científica majoritária.

SEE

Se a síntese evolutiva estendida não é um chamado por uma revolução na evolução, então o que ela é e por que precisamos dela? Para responder a essas perguntas, precisamos reconhecer um acerto de Kuhn: cada campo científico possui maneiras compartilhadas de pensar, ou quadros conceituais.

A biologia evolutiva não é diferente. Nossos valores e premissas compartilhadas influenciam quais dados coletamos, como os interpretamos e quais fatores são embutidos nas explicações sobre o funcionamento da evolução.

Por isso o pluralismo científico é saudável. Lakatos destacou que quadros conceituais alternativos (diferentes programas de pesquisa) podem ser valiosos pois incentivam o teste de novas hipóteses ou levam a novos insights. Essa é a primeira função da SEE: alimentar ou mesmo abrir novas linhas de pesquisa e maneiras produtivas de pensar.

Um bom exemplo é o viés de desenvolvimento. Considere os peixes ciclídeos da África oriental. Para dezenas ou até centenas de espécies de ciclídeos existentes no lago Maláui existe uma espécie “duplicada”, que evoluiu independentemente, no lago Tanganica, com grandes semelhanças no formato corporal e no modo de se alimentar.

Tais semelhanças costumam ser explicadas pela evolução convergente: houve variação genética aleatória, mas condições ambientais semelhantes selecionaram os genes com resultados equivalentes.

Entretanto, o nível extraordinário de evolução paralela visto nesses dois lagos sugere que algo mais pode estar em jogo. E se algumas maneiras de “construir” um peixe forem mais prováveis que outras? E se a variação de características é enviesada em favor de certas soluções? A seleção ainda faria parte da explicação, mas a evolução paralela seria muito mais provável.

Estudos mostram que é possível usar um modelo matemático, baseado em camundongos de laboratório, para prever tamanho e número de dentes em uma amostra de 29 espécies de roedores.

Esses estudos são intrigantes pois ajudam a converter a biologia evolutiva em uma ciência mais previsora. Por que, então, essas ideias receberam, comparativamente, pouca atenção até pouco tempo atrás?

ALTERNATIVAS

Voltamos aos quadros conceituais. Historicamente falando, biólogos evolutivos tratam o viés na variação fenotípica apenas como uma limitação –o modo como os organismos crescem restringe o tipo de características que eles poderão ter.

Foi preciso uma perspectiva diferente (neste caso, a da biologia evolutiva do desenvolvimento, chamada evo devo) para motivar novos experimentos. De um ponto de vista evo devo, os dentes de roedores e os corpos de peixes são como são porque o modo como esses animais crescem aumenta a probabilidade de essas características surgirem. Assim, o viés torna-se um conceito muito mais importante na explicação da evolução.

A síntese evolutiva estendida, ao menos como eu e meus colaboradores a enxergamos, é mais bem vista como um programa de pesquisas alternativo da biologia evolutiva.

Inspirada por descobertas recentes, a SEE parte da premissa de que os processos do desenvolvimento exercem papéis importantes como causas de variações fenotípicas novas (e potencialmente benéficas), como causas de diferenças de adequação dessas variantes e causas de transmissão para descendentes.

Em contraste com a concepção tradicional, na SEE a criatividade na evolução não é atribuída apenas à seleção natural. Esse modo alternativo de pensar está sendo usado para gerar novas hipóteses e traçar novas agendas de pesquisa. Ainda estamos nos primórdios da SEE, mas já há sinais frutíferos.

Se a evolução não se explica só por mudanças nas frequências de genes; se mecanismos antes rejeitados, como a herança de características adquiridas, revelarem ter importância; e se for reconhecido que os organismos enviesam a evolução por meio de desenvolvimento, aprendizagem e outras formas de plasticidade, tudo isso significa que está emergindo um relato radicalmente diferente e profundamente mais rico da evolução?

Ninguém sabe. Mas, do ponto de vista daquela pessoa que leva os cães para caminhar, a evolução está ficando menos parecida com um passeio genético aprazível e mais com uma luta frenética dos genes para acompanhar agitados processos de desenvolvimento"...