terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Antropologia Aplicada à educação indígena: o caso da escola “Apurinã”.

                         luta indígena pelo direito à demarcação de suas terras continua em todas as regiões do país, paralela a por assistência médica, pelo fim do preconceito de que são vítimas e pela manutenção de suas culturas e identidades diferenciadas.

                    Concomitante a essas lutas pela cidadania, começaram a se desenvolver trabalhos de educação escolar diferenciada, que têm os membros da comunidade indígena como centro do processo. Este tipo de trabalho veio como uma nova alternativa aos trabalhos em educação tradicionalmente efetuados pela Fundação Nacional do Índio (antigo Serviço de Proteção ao Índio) e por algumas organizações religiosas.
                     É, portanto, nesta linha de preocupação com a autodeterminação da comunidade indígena e com a manutenção de sua identidade étnica, que se iniciou uma experiência visando analisar o desenvolvimento do trabalho de educação escolar indígena na aldeia Camicuã, de língua Apurinã (tronco Arauá), localizada no baixo Purús (Amazonas), como também suas implicações na identidade étnica do grupo.

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II                         A partir de meados do século passado se iniciou a colonização do vale rio Purús. Expedições, compostas principalmente de nordestinos, partiam de Manaus em busca de novas áreas para a extração da seringa. Segundo relatos da época, a área ocupada pelos Apurinã era excelente para este tipo de extrativismo.
                            Os Apurinã à época do contato ocupavam uma área de 300 milhas no Rio Purus. Viviam afastados das margens em casas que eram ocupadas por três ou quatro famílias na época do inverno, e iam para perto do rio no verão, onde cada família fazia um abrigo. Manoel Urbano da Encarnação, conhecido como um dos grandes desbravadores da região e um dos primeiros a se estabelecer na área ocupada por essa nação, contou dezessete aldeias Apurinã no Purús. Castelo Branco comenta o seguinte sobre sua alimentação: “Os de Purús plantavam em pequena escala - mandioca, uaipy, batata, cajá, ananás, pupunha, inhame, mundubi, cana, milho, banana”.(Castelo Branco, 1950:35)
                           Todos os expedicionários são unânimes em afirmar que, apesar de guerreiros entre seus próprios grupos, eles eram “extremamente pacíficos” (Castelo Branco, 1950: 12) com os “brancos”, e desta forma foram de grande ajuda no conhecimento da região, servindo de guia para as expedições.
                        A realidade, no entanto, não era tão harmoniosa como nos parece ao ler os relatos dos viajantes, e logo houve muitas baixas entre os índios, principalmente devido a doenças como sarampo.
                      Alguns grupos contatados passaram a trabalhar na extração da borracha e de outros produtos com valor comercial: “Em alguns lugares os exploradores dos seringais foram bem recebidos como no baixo Acre, entre os Ipurinas, os quais, segundo Newtel Maia, um dos primeiros desbravadores destas selvas, eram pacíficos e se apresentavam aos invasores para com eles trabalharem; tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminadas as sobras pelos bolivianos quando se apossaram da região, no fim do século XIX”. (Castelo Branco, 1950: 12)
                         Outros grupos fugiram para o interior da mata: “O sistema de catequese dos primeiros ocupantes contrariando-lhes a índole e obrigando-os ao serviço de caça e pesca, no qual revelavam extraordinária habilidade, e as índias nos trabalhos domésticos e outros inconfessáveis, forçou-os a abandonar suas malocas, à beira dos rios, imigrando para a mata, aonde seriam livres, originando-se destes métodos de tratamento lutas e represálias tremendas”. (Castelo Branco, 1950: 21)
                      No fluxo dos conquistadores vieram os missionários católicos que converteram os índios, embora não de forma total, pois os “nativos” da região adaptaram os novos símbolos e idéias às suas crenças antigas.
                      O contato, as mudanças econômicas, religiosas e sociais tiveram como conseqüência profundas transformações culturais. Alimentos novos, armas de fogo, casas no estilo dos seringueiros, a noção de pecado, a língua portuguesa, tudo isso foi sendo assimilado, ainda que reinterpretado por essa população.
A área indígena na qual estamos trabalhando, onde fica a aldeia Camicuã, surgiu da migração de um grupo que vivia no interior, no “centro”, como eles chamam, para próximo do rio Purús e da cidade de Boca do Acre (AM), onde eles poderiam vender a borracha.
                         Na década de 70 chegaram os fazendeiros ao local, e logo muitas áreas de floresta viraram pasto, entre elas as áreas que tradicionalmente eram ocupadas pelos Apurinã.
                       A comunidade de Camicuã, como todas as aldeias Apurinã da região, partiram, então para assegurar seus direitos. Houve muito conflito, brigas e até mortes na disputa pela terra. Muitas vezes a FUNAI se colocou ao lado do fazendeiro e a delimitação e demarcação das terras foi um processo conflituoso. Num primeiro momento ficou fora da área indígena seringueiras, castanheiras e igarapés, recursos indispensáveis para a manutenção econômica e cultural da aldeia.
                      Passados 150 anos de contato a comunidade luta pela sobrevivência: planta macaxeira e feijão ,alguns pescam, outros compram o peixe na cidade, a caça é rara. Não tem assistência médica na aldeia, apenas uma vez por ano recebem a visita de uma equipe da área de saúde.
                    A religião não é mais a de 100 anos atrás, hoje alguns deles são adeptos do Santo Daime e existe um movimento entre eles para adaptar os rituais religiosos à representação que eles têm hoje de sua “cultura tradicional” ( a idéia de “cultura tradicional” para os membros da comunidade é quase que uma representação de caráter mitológico de como teria sido a vida dos Apurinã antes do contato). Existem também alguns protestantes e católicos.
                      Há muitos casamentos mistos e membros da aldeia vivendo em Boca do Acre, a cidade mais próxima, e também em Rio Branco. Entretanto a aldeia vem crescendo, principalmente devido a migração de parentes vindos de aldeias distantes. O ingresso destes novos membros é uma das causas da sua heterogeneidade da população, pois os que vêm do “centro” conservam mais a “cultura tradicional”, além de falar a língua Apurinã (o que não acontece aos nascidos em Camicuã, que apenas têm alguma noção da língua de seu povo).
III

                      Visto este quadro geral da situação histórica e social da aldeia Camicuã, passaremos agora a dar uma idéia sobre as condições em que se encontrava a educação escolar na época do início do nosso trabalho.
                        A escola funciona de 1a 4 série, sendo que as 3e 4séries são lecionadas em classe multisseriada. Há uma professora, que cursou até a 5série, e que leciona para a 1 série (a escola não tem alfabetização, o ensino se inicia a partir da primeira série). O outro professor terminou o 2 grau e atende às séries restantes.
                        Estes professores nunca tiveram treinamento pedagógico, e se ressentem muito do despreparo. A Prefeitura não dá nenhum apoio às escolas indígenas, a Secretária de Educação nem mesmo conhece as escolas localizadas nas suas áreas. Como conseqüência desse quadro, os professores ficam entregues à sua própria experiência.
                         Em termos de estrutura física, a escola constitui-se em uma casinha de madeira com duas salas e varanda, no estilo dos “brancos” da região. Às vezes eles recebem merenda, e quando recebem na maioria dos casos não gostam do tipo da comida, muito diferente da que eles estão acostumados. Além disso, há o problema de não terem quem cozinhe para os alunos.
                      Em outras comunidades a merenda é feita por algumas voluntárias ou pelas mães dos alunos. O fato de nesta aldeia ninguém se dispor para tal tarefa demonstra o afastamento que há entre escola e comunidade. A escola, apesar de fazer parte do cotidiano das crianças, não é uma instituição integrada aos outros aspectos da vida social do grupo.
                      A maioria dos pais não sabe em que série os filhos estudam. Se os meninos querem deixar de freqüentar a escola, o fazem sem muito problema e são muitas vezes incentivados pelos próprios pais a fazê-lo para que possam se dedicar mais às atividades de agricultura, pesca e caça.
                       Durante as aulas, os próprios alunos são passivos, desatentos e desinteressados, o que é reflexo da qualidade de ensino e a falta de interesse da comunidade pela escola. Esse desinteresse se dá não só como resultado da falta de formação pedagógica do professor, como também pelo modelo de ensino empregado, o qual é baseado na escola do “branco”.
                         Os livros utilizados são os distribuídos pelo Ministério da Educação para todas as escolas do país, e não contemplam as particularidades da vida e da cultura da aldeia. Esse material didático trata na maioria das vezes de realidades completamente diferentes das vivenciadas por eles, tendo como conseqüência a dificuldade na aprendizagem de conteúdos.
                        Não há nada nas aulas que remeta para a cultura deles. Até as datas comemorativas observadas são o Dia-das-Mães, Páscoa, Independência do Brasil, etc., e não os acontecimentos que marcam a cultura e a história do grupo. Na verdade, ele nem mesmo têm o conhecimento de sua própria história, pois os próprios professores estudaram nas escola da cidade onde só se aprende a história oficial do Brasil.
                       Todas as aulas são ministradas em português, pois a maioria dos alunos não sabe falar a língua original de seu povo. Este fato ainda cria um problema a mais para os alunos que nasceram em aldeias mais distantes e que não dominam completamente o português, visto que em suas aldeias de origem eles se comunicavam em          Apurinã. O falar apurinã é desvalorizado tanto na escola como fora dela, e essas crianças têm até vergonha de falar em frente aos outros e serem motivo de risos.
                     Para ilustrar o desinteresse dos alunos pela escola e a falta de valorização dessa instituição na comunidade temos dados referentes ao ano de 1996 no qual havia 32 alunos iniciando na 1série e apenas 2 na 4série.
                      Esse quadro se insere numa realidade mais ampla, em que historicamente a educação escolar indígena no Brasil vem apresentando um caráter assimilacionista. Duas frentes têm trabalhado neste sentido: missões religiosas e agências governamentais.
Desde o princípio da colonização as missões religiosas realizam trabalhos voltados para a educação junto às comunidades indígenas. Na verdade, o objetivo destas missões têm sido até hoje a cristianização e a tentativa de “civilização” destes grupos.
                   As agências governamentais representadas pelo Serviço de Proteção aos Índios , criado no início do século, e pela entidade que o substituiu, a Fundação Nacional do Índio , criada durante o período do governo militar, sempre tiveram um caráter integracionista. Suas práticas tinham como pano de fundo a certeza de que estavam tratando com povos em vias de extinção, visto que seus modos tradicionais de vida seriam incompatíveis com a assim chamada “sociedade brasileira moderna”.
                Atualmente, estas práticas educacionais coexistem com novas práticas que têm um perfil não integracionista, mas caracterizadas pela idéia de que as sociedades indígenas não acabarão, e por isso necessitam se fortalecer, tanto internamente quanto na sua relação com os demais setores da sociedade. Essa outra premissa muda todo o caráter do trabalho em educação escolar, visto que essa nova filosofia de trabalho aposta na coexistência de sociedades e culturas diferenciadas num país que se acredita homogêneo como o Brasil.
                 O trabalho de assessoria a que nos propusemos desenvolver segue esta segunda perspectiva, na qual a proposta é de fortalecimento da identidade étnica desse povo.
                Desde o ano de 1996 mantemos contato com a aldeia de Camicuã. Logo no primeiro contato, o problema da educação escolar foi colocado pelos membros da comunidade, e principalmente pela liderança.         Posteriormente, partindo do principio de que a todo momento os anseios da comunidade devem nos guiar, fizemos um levantamento que incluiu todas as famílias, para conhecermos os principais problemas enfrentados pela comunidade, e nos foi mostrado que as questões econômicas, de saúde e educação escolar eram os pontos que mais preocupavam.
                   Partindo de nossa formação como professores, e acreditando que a implementação de mudanças na educação escolar afetaria diretamente os outros dois níveis, optamos por concentrarmos nosso trabalho nesse campo.
                   A assessoria à escola dessa aldeia Apurinã tem como objetivos a formação dos professores indígenas e a construção de currículos específicos em parceria com os mesmos, através de um acompanhamento periódico das suas atividades.
                   A metodologia do trabalho é baseada nos princípios de Paulo Freire, tanto no que diz respeito a tratar o aluno como sujeito da prática escolar, quanto a valorizar o universo cultural local na escolha de métodos e conteúdos das aulas. Integrado ao trabalho diretamente na escola está o trabalho de pesquisa que iniciamos junto a professores e alunos. Esse trabalho visa levantar informações sobre a cultura tradicional Apurinã, seus mitos, seus cantos, sua história recente e antiga, além de tentar compreender a situação sociocultural e lingüística atual da comunidade, com a preocupação de perceber as forças que atuam contra e a favor da manutenção da sua identidade étnica.

V

                 Uma das maiores preocupações de quem trabalha com educação escolar indígena é quanto à interferência na cultura de seu povo. Ficamos nos perguntando se podemos propor isso ou aquilo ao professor, ou se a implementação de alguma prática pode afetar negativamente sua cultura. Por esse motivo, é necessário que conheçamos bem a relação entre a cultura e a etnicidade nesta aldeia Apurinã.
                   Entendemos cultura como o modo de vida da comunidade, levando em conta o contexto e o processo histórico no qual o grupo está inserido, e etnicidade como o “sentimento” de perecimento a determinado grupo étnico. Estas duas categorias de percepção da realidade social são indissociáveis. A cultura é a base do referencial simbólico que forma a identificação étnica, participando assim do processo de construção e reconstrução da identidade.
                   Passamos, então, a nos perguntar até que ponto um trabalho de assessoria numa escola indígena pode afetar, positiva ou negativamente, a cultura, a organização social, e consequentemente a identidade étnica desse grupo de Apurinã.
                  Partindo deste questionamento podemos elencar alguns problemas específicos que surgem ao se transformar a educação escolar indígena, e através dela aspectos culturais deste povo. A primeira questão que se coloca é sobre o impacto da escrita numa sociedade quase completamente baseada na oralidade. Apesar do intenso contato com as cidades de Boca do Acre e Rio Branco, o seu convívio com a escrita se dá apenas através de cartazes de políticos, bulas de remédios, nomes nas camisas, nas certidões e documentos.
                 Como toda a situação que envolve a implementação de uma escola indígena diferenciada, também este problema da oralidade e da escrita é bastante ambíguo, apontando tanto para soluções quanto para perigos.
                A introdução real da escrita atende a várias necessidades da comunidade, entre elas a de possibilitar um conhecimento maior de outras realidades sociais, e também de reconstruir e perpetuar sua história através da fixação em símbolos gráficos. Por outro lado, essa fixação pode ter conseqüências fortes sobre uma cultura que se baseia numa memória oral e visual muito ricas, modificando assim toda esta forma própria de perceber o mundo.
                  Além disso, o conhecimento oral tem a característica de um processo, ou seja, é algo que não se cristaliza, as histórias vão se modificando conforme o tempo passa e novos fatos vão acontecendo. Já a escrita, fixa, engaiola a idéia que fluía nos ares e nas mentes.
                Outra questão que se coloca nesta experiência é a da recuperação da auto-estima individual e social dos integrantes da comunidade. A introdução de conteúdos relacionados à sabedoria do próprio povo e a utilização de métodos e de uma organização escolar baseada no seu estilo de vida, têm como objetivos resgatar essa auto-estima, este orgulho e a identificação positiva com seu povo.
                A importância deste tipo de filosofia na escola indígena é tanto maior quanto mais vai aumentando o contato com os centros urbanos, e consequentemente cresce a desvalorização de suas particularidades étnicas. A escola deve ajudar a formar uma consciência crítica do índio em relação à sua situação social, cultural e econômica, dando-lhe condições de reinterpretar os códigos que lhes são enviados.
              Por outro lado, a formação dos alunos pode acarretar o surgimento de uma espécie de classe, constituída pelos letrados em oposição aos analfabetos. Temos, portanto, que verificar também que impacto isso pode ter na organização social do grupo, considerando um aumento das diferenciações internas e também a possibilidade do aumento da emigração devido à vontade de adquirir mais conhecimentos ou mesmo pela maior possibilidade de trabalhar fora da aldeia.
              São esses pontos, já detectados, como outros que vão surgindo no decorrer do trabalho, que está nos interessando nesse processo de pesquisa/atuação. Temos, então, como resultados obtidos até o momento: 1) levantamento histórico da comunidade; 2) dados etnográficos coletados em pesquisa de campo; 3) dados referentes à observação do cotidiano escolar.
            O maior conhecimento da organização social, da cultura, das ambições e das transformações efetuadas por essa experiência junto aos professores indígenas, vai possibilitando que, não só possamos apontar algumas idéias em relação ao futuro, como também, até mesmo modificar, dentro do possível, algumas previsões, através da atuação dos professores no sentido de fortalecer a identidade étnica do seu grupo e a sua atuação no âmbito social amazônico e brasileiro.

Relátorio Elaborado (Eu e Célia) para o Departamento de Ciências Socias

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Cronistas em viagem e educação indígena - Nietta Lindenberg Monte


 “A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em auto complacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento de particular do tempo que se deseja evocar.”

 Antônio Candido

Fonte: Internet  - arquivo PDF

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Aprendendo e ensinando uma nova lição: Educação Popular e Metodologia Popular

 Segundo Carlos Brandão, educação é uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum como saber, idéia, crença, aquilo que é comunitário, como bem, trabalho ou como vida. Mas pode existir também imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre as pessoas, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A educação é uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam uma cultura. Produzem e praticam formas de educação para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o saber das palavras, códigos sociais, regras de trabalho, segredos da arte, da religião e da tecnologia de que qualquer povo precisa para reinventar a vida do grupo e dos sujeitos, sempre. Através de trocas sem fim, a educação ajuda a explicar - às vezes a ocultar e inculcar - a necessidade da existência de uma ordem.

Educação Popular

A educação popular difere de treinamento ou da simples transmissão de informações. Significa a criação de um senso crítico que leve as pessoas a entender, comprometer-se, elaborar propostas, cobrar e transformar(-se).
Não é um discurso acadêmico sobre um método, nem um produto acabado ou uma receita simples e mágica. Nem se confunde com dinâmicas de grupo usadas como instrumento tático para atrair pessoas. As dinâmicas são recursos necessários para estimular a participação e a cooperação.
Não é um método fácil que populariza a complexidade, embora faça o esforço criativo de traduzir conceitos abstratos em linguagem cotidiana, metáforas e símbolos. É um processo coletivo de produção e socialização do conhecimento que capacita educadores e educandos a ler criticamente a realidade sócio-econômico-político-cultural com a finalidade de transformá-la.
Como apropriação crítica dos fenômenos e de suas raízes, permite o entendimento dos momentos e do processo da luta de classes, presente na sociedade. A tomada de consciência ajuda a quebrar todas as formas de alienação, possibilitando a descoberta do real e de sua superação, a criação de uma estratégia, do novo, do futuro, da vida, sempre.
A educação fala de um caminho político-pedagógico que exige o envolvimento co-responsável de todas as pessoas participantes, na construção, apropriação e multiplicação do conhecimento. Essa experiência de aprender e ensinar só poderia interessar ao oprimido, já que no capitalismo não há lugar para ele e que, por isso, ‘só ele’ pode libertar-se e, ao libertar-se, liberta também seu opressor.
A educação popular fala da opção pelo pólo oprimido na luta de classes, e seu ponto de partida é a convicção de que o povo já tem um saber, parcial e fragmentado e que carrega em si o dom de ser capaz. Mas precisa refletir sobre o que sabe (não sabe que sabe) e incorporar o acúmulo teórico da prática social. Torna-se um instrumento que desperta, qualifica e reforça o potencial popular em sua luta para romper a lógica do capital e construir uma alternativa solidária.
Uma precondição para quem entra num processo de educação Popular é o amor pelo povo como entrega gratuita e solidária, livre de qualquer forma de piedade ou martírio. Nesse jeito de fazer política, as pessoas colocam sua alma, mesmo sabendo que o povo carrega muitas contradições. Significa convicção e paixão carregadas de indignação contra a injustiça e cheias de ternura pelo povo e por quem se dispõe a construir um mundo sem dominação. Uma vez apaixonada, a pessoa amante sempre descobre um jeito de agradar a pessoa amada e faz tudo para que a pessoa se desenvolva como gente e como povo. O maior sinal dessa opção é a militância e o companheirismo.

Processo Educativo

A educação popular é uma experiência que se realiza através de atividades formativas, que partem das necessidades sentidas, das ações praticadas e sempre em sintonia com as diversas dimensões das pessoas envolvidas.
Sua tarefa específica é relacionar o fazer (saber empírico) das pessoas com uma reflexão teórica (saber científico) e integrar a dimensão imediata (micro) com a dimensão estratégica (macro).
A educação popular é um processo educativo permanente que tenta concretizar suas convicções, princípios e valores, respondendo adequadamente em cada conjuntura.

Concepção metodológica dialética

A Educação Popular usa a metodologia indutiva - olha as partes e, por um processo de síntese (clarificar, sistematizar, perceber a lógica), supera a alienação e apreende o todo. Também usa a metodologia dedutiva - parte do geral para entender as particularidades influenciadas pelo global. Nos dois casos, é indispensável que o caminho seja participativo. Para superar qualquer forma de doutrinamento ou dogmatismo é indispensável que haja a interação de algumas balizas básicas:
* A necessidade dos(as) educandos(as) que se manifesta nas experiências particulares construídas e nas demandas apresentadas como anseio e reivindicação. O educando é parte distinta e integral, com necessidades, anseios, fantasias, limites, saberes, valores, ritmos, sexo, idade, raça... E nunca depósito, cliente, objeto de manipulação; muito menos o "sabe-tudo" do discurso basista.
*O querer dos(as) educadores(as), com sua visão de mundo, opção de vida, limites e acúmulo de conhecimentos da prática social que carregam (teoria). Entender os conceitos do depósito histórico é uma exigência para poder desmontá-los e recriá-los. O educador é um pólo do diálogo que, em geral, toma a iniciativa do processo. Não é o guia genial que faz a cabeça, presente no discurso autoritário e vanguardista nem o acessório. Sua tarefa é educar (ex-ducere=extrair), assessorar, facilitar o acesso a, ajudar a sistematizar.
* O contexto onde se dá o processo, pois o processo educativo acontece com pessoas situadas, mergulhadas numa teia de relações econômicas, históricas, culturais, religiosas, interpessoais, políticas e sociais. O diálogo se realiza num contexto estrutural e conjuntural conflitivo que facilita ou coloca obstáculos. É aí que o educador popular propõe sua ousadia contra o possibilismo, mas sem voluntarismo.
* O contrato entre as partes para a construção de uma proposta e definição de responsabilidades. O diálogo, como postura e prática do intercâmbio, contribui para evitar o utilitarismo entre as partes. É verdadeiro quando une afinidades, negocia interesses e, numa relação dialética, envolve as partes como protagonistas, mesmo exercendo papéis específicos de parturiente, de filho(a) ou parteira.

"Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento e gente de fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam: mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar e quem chegar perto pega fogo". (Galeano)

Metodologia

Muitas vezes, as pessoas falam em metodologia pensando nas dicas de como fazer as coisas, nos procedimentos e dinâmicas de grupo ou ainda na seqüência de como deve seguir uma atividade. Acentua-se assim o caminho como uso de técnicas participativas. Mas, como qualquer método não é um instrumento técnico neutro, mas sempre ligado a uma visão de mundo e a um objetivo histórico concreto, a pedagogia também é marcada por um projeto de pessoa e de sociedade. Pode-se dizer, de forma esquemática, que existem três modelos básicos de metodologia que, numa contínua tensão, se repelem e se atraem.

Metodologia Formal-hierárquico-autoritária: SOBRE

A metodologia autoritária e dominadora visa a domesticação das pessoas para que elas se prestem a obedecer e a reproduzir um padrão de comportamento que serve a uma ordem e aos interesses de uma classe dominante.

Metodologia populista: PARA

Essa metodologia utiliza o discurso da metodologia popular, mas sua prática é autoritária. Visa manter as pessoas dominadas pela manipulação, quando a sensação de que são parte. Na prática, apresentando-se com a postura de pessoas boazinhas e tomando a iniciativa pelas outras, perpetuam nelas a dependência e o sentimento de inferioridade.

Metodologia Dialética-dialogal-libertadora: COM

A metodologia participativa (nem para, nem sobre, mas com as diferentes partes envolvidas) afirma que o modo de fazer já é, de certa forma, o que se quer fazer e o para que se faz. Visa despertar o senso crítico e promover o diálogo entre as partes para juntá-las num processo de construção coletiva, numa perspectiva solidária.
Partindo da convicção de que quem faz é quem sabe, mas quem pensa sobre o que faz faz melhor e quem faz faz também o sentido do que faz, a metodologia popular significa, ao mesmo tempo:
* Um caminho em que educadores tomam uma postura respeitosa e sugerem formas de participação e de colaboração.
* Um caminho cujo ponto de partida é a convicção de que toda pessoa é capaz, que as pessoas desenvolvem diferentes capacidades, que as pessoas oprimidas têm interesse em superar a atrofia física, mental e cultural a que foram submetidas e que a emancipação começa por quem se dispõe a um processo de transformação individual e social.
* Um caminho que tem como ponto de chegada a auto-estima das pessoas, sua necessidade de unir esforços, de organizar-se para a luta e a conquista de direitos e para a tarefa de assumir-se como sujeito do seu destino coletivo.
* Na prática, caminho, convicção e objetivo, mesmo sendo espaços diferentes, cada um é começo, meio e fim, pois carecem um do outro, numa relação de interdependência.

Qualidade e quantidade

A Educação Popular se concretiza no trabalho de base, pois tomar conhecimento não significa, necessariamente, tomar posição na luta social. O trabalho de base se faz a partir das necessidades sentidas e num processo de contínuo comprometimento das pessoas envolvidas. Porém, acreditar que as respostas espontâneas do povo já sejam alternativas transformadoras pode apenas significar uma posição tão autoritária (basista) quanto a própria imposição. Junto com o reconhecimento e o respeito às iniciativas populares, será necessário potencializar essas ações e estimular a construção de alternativas mais globais.
Numa conjuntura de resistência, nem sempre o trabalho popular conseguiu ser um trabalho com sustentação. Não se ampliou por causa da repressão ou pela ilusão de que as iniciativas localizadas já representavam uma saída de libertação. Além disso, havia o equívoco de pensar que os processos acompanhados do trabalho de base seriam incompatíveis com a massividade, no temor de perder a originalidade e os princípios. Faltava a dimensão do projeto político que, com base num tema gerador, articula-se, num processo crescente, uma rede de solidariedade. Nessa visão, as pessoas interessadas devem comprometer-se com a mobilização de um grupo que, por sua vez, contagia seus colegas de luta, de vida e trabalho, formando ondas multiplicadoras sucessivas.
Hoje, o desafio da realidade nacional exige uma multidão de gente capaz (quantidade com qualidade) que se disponha a responder às demandas de animação, elaboração, organização e articulação da luta política. Pela primeira vez, o centro da política brasileira pode ser o resgate da dívida social. Depende da capacidade de mobilização da sociedade.
O critério determinante para um projeto merecer investimento deveria ser sua eficácia, pela possibilidade de resultados concretos e duradouros. Por exemplo, o Programa de Segurança e Soberania Alimentar pode nascer exemplar por trazer, em si, a condição de universalizar-se, de cruzar os aspectos quantitativo e qualitativo, o concreto e o permanente, a eficiência e eficácia. Junto com a mobilização da sociedade, os destinatários do programa poderiam criar as condições reais de mudar a realidade. E, ao mudar o meio em que vivem, podem mudar as condições que geram as situações de exclusão de que são vítimas.
É tarefa da educação popular apoiar os oprimidos que se dispõem a contribuir com um processo solidário de transformação da realidade. Não se trata de excluir qualquer pessoa, mas da necessidade de priorizar pessoas, áreas e processos. Priorizar é limitar o leque de atendimento para concentrar recursos sobre uma parte que, sendo ponto de partida, tenha como horizonte a inclusão do todo.

Eficiência e eficácia

Diz-se que uma pessoa é eficiente quando faz o trabalho tecnicamente bem feito e que é eficaz quando realiza a tarefa adequada, com profissionalismo. Assim, alguns sinais indicam se a metodologia da educação popular, aplicada a um processo político-pedagógico (Trabalho , Base), segue bem:

* Anima e apaixona seus participantes porque resgata neles o elemento da identidade e da dignidade (auto-estima).

* Mobiliza porque rompe com a situação de dormência e a sensação de impotência geradas pela dominação e expressas no individualismo consumismo e fatalismo.

* Compromete as pessoas, numa dimensão integral da vida, em processos legítimos de luta pela vida para a emancipação das pessoas e na sua afirmação como sujeitos sociais.

* Capacita e qualifica, política e tecnicamente, os militantes através da experimentação e apropriação do conteúdo e do método.

* Produz a multiplicação criativa, com base numa parte que tem como meta a "massividade" e a realidade mais geral.

* Produz fermentação social e mobilização política ao fortalecer ações coletivas no enfrentamento dos seus problemas e na construção de soluções que expressem o poder da população.

* Incentiva a construção de espaços de participação popular, gestão democrática, afirmação da cidadania ativa, ampliação dos direitos e processos de controle social e de democratização do Estado.

* Incentiva e contribui para a canalização de processos legítimos de luta pela emancipação e pela vida.

* Facilita a articulação de práticas populares no rumo de um Projeto Alternativo e Popular de transformação social.

Orientações pedagógicas

Com base na intencionalidade do Programa Fome Zero e da Mobilização Social em torno dele, devem-se observar os seguintes procedimentos metodológicos:

* Aproximação e conhecimento da realidade social em que se vai desenvolver o trabalho, na perspectiva da educação popular, com a metodologia da observação participante, numa atitude de abertura e de escuta para a construção de diagnósticos das realidades locais, fomentando a solidariedade e o espírito de militância dos grupos em contato.

* Mobilização social que junte os esforços de articulação e formação (encontros, seminários, oficinas, reuniões formativas, grupos de estudos, círculos interativos, intercâmbios de experiências, mutirões de formação popular e caravanas) em torno de programas concretos, ligado à defesa da vida.

* Desenvolvimento de processos educativos que articulem a teoria com as práticas sociais, entidades e agentes envolvidos com diferentes modalidades formativas, instrumentos didático-pedagógicos e comunicação de massa, cultura popular de resistência e reinvenção das relações econômicas, sociais, culturais, ambientais etc.
* Construção coletiva do conhecimento fundamentada no processo dialético prática-teoria-prática, associando o conhecimento da realidade com sistematização das experiências e conhecimentos dos processos de articulação, formação e mobilização, concretizando o "aprender com a prática".

* Articulação das forças sociais com a estruturação de redes de educadores populares, entidades e movimentos sensíveis à necessidade de mobilização social para um amplo mutirão nacional em defesa da vida.

* Planejamento das diferentes ações que potencializem a dimensão educativa da ação, fazendo da articulação e da formação um fator efetivo da mobilização social e monitorando o plano com avaliações regulares.

Ranulfo Peloso - Membro do Centro de Educação

Fonte: ADITAL