terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Antropologia Aplicada à educação indígena: o caso da escola “Apurinã”.

                         luta indígena pelo direito à demarcação de suas terras continua em todas as regiões do país, paralela a por assistência médica, pelo fim do preconceito de que são vítimas e pela manutenção de suas culturas e identidades diferenciadas.

                    Concomitante a essas lutas pela cidadania, começaram a se desenvolver trabalhos de educação escolar diferenciada, que têm os membros da comunidade indígena como centro do processo. Este tipo de trabalho veio como uma nova alternativa aos trabalhos em educação tradicionalmente efetuados pela Fundação Nacional do Índio (antigo Serviço de Proteção ao Índio) e por algumas organizações religiosas.
                     É, portanto, nesta linha de preocupação com a autodeterminação da comunidade indígena e com a manutenção de sua identidade étnica, que se iniciou uma experiência visando analisar o desenvolvimento do trabalho de educação escolar indígena na aldeia Camicuã, de língua Apurinã (tronco Arauá), localizada no baixo Purús (Amazonas), como também suas implicações na identidade étnica do grupo.

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II                         A partir de meados do século passado se iniciou a colonização do vale rio Purús. Expedições, compostas principalmente de nordestinos, partiam de Manaus em busca de novas áreas para a extração da seringa. Segundo relatos da época, a área ocupada pelos Apurinã era excelente para este tipo de extrativismo.
                            Os Apurinã à época do contato ocupavam uma área de 300 milhas no Rio Purus. Viviam afastados das margens em casas que eram ocupadas por três ou quatro famílias na época do inverno, e iam para perto do rio no verão, onde cada família fazia um abrigo. Manoel Urbano da Encarnação, conhecido como um dos grandes desbravadores da região e um dos primeiros a se estabelecer na área ocupada por essa nação, contou dezessete aldeias Apurinã no Purús. Castelo Branco comenta o seguinte sobre sua alimentação: “Os de Purús plantavam em pequena escala - mandioca, uaipy, batata, cajá, ananás, pupunha, inhame, mundubi, cana, milho, banana”.(Castelo Branco, 1950:35)
                           Todos os expedicionários são unânimes em afirmar que, apesar de guerreiros entre seus próprios grupos, eles eram “extremamente pacíficos” (Castelo Branco, 1950: 12) com os “brancos”, e desta forma foram de grande ajuda no conhecimento da região, servindo de guia para as expedições.
                        A realidade, no entanto, não era tão harmoniosa como nos parece ao ler os relatos dos viajantes, e logo houve muitas baixas entre os índios, principalmente devido a doenças como sarampo.
                      Alguns grupos contatados passaram a trabalhar na extração da borracha e de outros produtos com valor comercial: “Em alguns lugares os exploradores dos seringais foram bem recebidos como no baixo Acre, entre os Ipurinas, os quais, segundo Newtel Maia, um dos primeiros desbravadores destas selvas, eram pacíficos e se apresentavam aos invasores para com eles trabalharem; tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminadas as sobras pelos bolivianos quando se apossaram da região, no fim do século XIX”. (Castelo Branco, 1950: 12)
                         Outros grupos fugiram para o interior da mata: “O sistema de catequese dos primeiros ocupantes contrariando-lhes a índole e obrigando-os ao serviço de caça e pesca, no qual revelavam extraordinária habilidade, e as índias nos trabalhos domésticos e outros inconfessáveis, forçou-os a abandonar suas malocas, à beira dos rios, imigrando para a mata, aonde seriam livres, originando-se destes métodos de tratamento lutas e represálias tremendas”. (Castelo Branco, 1950: 21)
                      No fluxo dos conquistadores vieram os missionários católicos que converteram os índios, embora não de forma total, pois os “nativos” da região adaptaram os novos símbolos e idéias às suas crenças antigas.
                      O contato, as mudanças econômicas, religiosas e sociais tiveram como conseqüência profundas transformações culturais. Alimentos novos, armas de fogo, casas no estilo dos seringueiros, a noção de pecado, a língua portuguesa, tudo isso foi sendo assimilado, ainda que reinterpretado por essa população.
A área indígena na qual estamos trabalhando, onde fica a aldeia Camicuã, surgiu da migração de um grupo que vivia no interior, no “centro”, como eles chamam, para próximo do rio Purús e da cidade de Boca do Acre (AM), onde eles poderiam vender a borracha.
                         Na década de 70 chegaram os fazendeiros ao local, e logo muitas áreas de floresta viraram pasto, entre elas as áreas que tradicionalmente eram ocupadas pelos Apurinã.
                       A comunidade de Camicuã, como todas as aldeias Apurinã da região, partiram, então para assegurar seus direitos. Houve muito conflito, brigas e até mortes na disputa pela terra. Muitas vezes a FUNAI se colocou ao lado do fazendeiro e a delimitação e demarcação das terras foi um processo conflituoso. Num primeiro momento ficou fora da área indígena seringueiras, castanheiras e igarapés, recursos indispensáveis para a manutenção econômica e cultural da aldeia.
                      Passados 150 anos de contato a comunidade luta pela sobrevivência: planta macaxeira e feijão ,alguns pescam, outros compram o peixe na cidade, a caça é rara. Não tem assistência médica na aldeia, apenas uma vez por ano recebem a visita de uma equipe da área de saúde.
                    A religião não é mais a de 100 anos atrás, hoje alguns deles são adeptos do Santo Daime e existe um movimento entre eles para adaptar os rituais religiosos à representação que eles têm hoje de sua “cultura tradicional” ( a idéia de “cultura tradicional” para os membros da comunidade é quase que uma representação de caráter mitológico de como teria sido a vida dos Apurinã antes do contato). Existem também alguns protestantes e católicos.
                      Há muitos casamentos mistos e membros da aldeia vivendo em Boca do Acre, a cidade mais próxima, e também em Rio Branco. Entretanto a aldeia vem crescendo, principalmente devido a migração de parentes vindos de aldeias distantes. O ingresso destes novos membros é uma das causas da sua heterogeneidade da população, pois os que vêm do “centro” conservam mais a “cultura tradicional”, além de falar a língua Apurinã (o que não acontece aos nascidos em Camicuã, que apenas têm alguma noção da língua de seu povo).
III

                      Visto este quadro geral da situação histórica e social da aldeia Camicuã, passaremos agora a dar uma idéia sobre as condições em que se encontrava a educação escolar na época do início do nosso trabalho.
                        A escola funciona de 1a 4 série, sendo que as 3e 4séries são lecionadas em classe multisseriada. Há uma professora, que cursou até a 5série, e que leciona para a 1 série (a escola não tem alfabetização, o ensino se inicia a partir da primeira série). O outro professor terminou o 2 grau e atende às séries restantes.
                        Estes professores nunca tiveram treinamento pedagógico, e se ressentem muito do despreparo. A Prefeitura não dá nenhum apoio às escolas indígenas, a Secretária de Educação nem mesmo conhece as escolas localizadas nas suas áreas. Como conseqüência desse quadro, os professores ficam entregues à sua própria experiência.
                         Em termos de estrutura física, a escola constitui-se em uma casinha de madeira com duas salas e varanda, no estilo dos “brancos” da região. Às vezes eles recebem merenda, e quando recebem na maioria dos casos não gostam do tipo da comida, muito diferente da que eles estão acostumados. Além disso, há o problema de não terem quem cozinhe para os alunos.
                      Em outras comunidades a merenda é feita por algumas voluntárias ou pelas mães dos alunos. O fato de nesta aldeia ninguém se dispor para tal tarefa demonstra o afastamento que há entre escola e comunidade. A escola, apesar de fazer parte do cotidiano das crianças, não é uma instituição integrada aos outros aspectos da vida social do grupo.
                      A maioria dos pais não sabe em que série os filhos estudam. Se os meninos querem deixar de freqüentar a escola, o fazem sem muito problema e são muitas vezes incentivados pelos próprios pais a fazê-lo para que possam se dedicar mais às atividades de agricultura, pesca e caça.
                       Durante as aulas, os próprios alunos são passivos, desatentos e desinteressados, o que é reflexo da qualidade de ensino e a falta de interesse da comunidade pela escola. Esse desinteresse se dá não só como resultado da falta de formação pedagógica do professor, como também pelo modelo de ensino empregado, o qual é baseado na escola do “branco”.
                         Os livros utilizados são os distribuídos pelo Ministério da Educação para todas as escolas do país, e não contemplam as particularidades da vida e da cultura da aldeia. Esse material didático trata na maioria das vezes de realidades completamente diferentes das vivenciadas por eles, tendo como conseqüência a dificuldade na aprendizagem de conteúdos.
                        Não há nada nas aulas que remeta para a cultura deles. Até as datas comemorativas observadas são o Dia-das-Mães, Páscoa, Independência do Brasil, etc., e não os acontecimentos que marcam a cultura e a história do grupo. Na verdade, ele nem mesmo têm o conhecimento de sua própria história, pois os próprios professores estudaram nas escola da cidade onde só se aprende a história oficial do Brasil.
                       Todas as aulas são ministradas em português, pois a maioria dos alunos não sabe falar a língua original de seu povo. Este fato ainda cria um problema a mais para os alunos que nasceram em aldeias mais distantes e que não dominam completamente o português, visto que em suas aldeias de origem eles se comunicavam em          Apurinã. O falar apurinã é desvalorizado tanto na escola como fora dela, e essas crianças têm até vergonha de falar em frente aos outros e serem motivo de risos.
                     Para ilustrar o desinteresse dos alunos pela escola e a falta de valorização dessa instituição na comunidade temos dados referentes ao ano de 1996 no qual havia 32 alunos iniciando na 1série e apenas 2 na 4série.
                      Esse quadro se insere numa realidade mais ampla, em que historicamente a educação escolar indígena no Brasil vem apresentando um caráter assimilacionista. Duas frentes têm trabalhado neste sentido: missões religiosas e agências governamentais.
Desde o princípio da colonização as missões religiosas realizam trabalhos voltados para a educação junto às comunidades indígenas. Na verdade, o objetivo destas missões têm sido até hoje a cristianização e a tentativa de “civilização” destes grupos.
                   As agências governamentais representadas pelo Serviço de Proteção aos Índios , criado no início do século, e pela entidade que o substituiu, a Fundação Nacional do Índio , criada durante o período do governo militar, sempre tiveram um caráter integracionista. Suas práticas tinham como pano de fundo a certeza de que estavam tratando com povos em vias de extinção, visto que seus modos tradicionais de vida seriam incompatíveis com a assim chamada “sociedade brasileira moderna”.
                Atualmente, estas práticas educacionais coexistem com novas práticas que têm um perfil não integracionista, mas caracterizadas pela idéia de que as sociedades indígenas não acabarão, e por isso necessitam se fortalecer, tanto internamente quanto na sua relação com os demais setores da sociedade. Essa outra premissa muda todo o caráter do trabalho em educação escolar, visto que essa nova filosofia de trabalho aposta na coexistência de sociedades e culturas diferenciadas num país que se acredita homogêneo como o Brasil.
                 O trabalho de assessoria a que nos propusemos desenvolver segue esta segunda perspectiva, na qual a proposta é de fortalecimento da identidade étnica desse povo.
                Desde o ano de 1996 mantemos contato com a aldeia de Camicuã. Logo no primeiro contato, o problema da educação escolar foi colocado pelos membros da comunidade, e principalmente pela liderança.         Posteriormente, partindo do principio de que a todo momento os anseios da comunidade devem nos guiar, fizemos um levantamento que incluiu todas as famílias, para conhecermos os principais problemas enfrentados pela comunidade, e nos foi mostrado que as questões econômicas, de saúde e educação escolar eram os pontos que mais preocupavam.
                   Partindo de nossa formação como professores, e acreditando que a implementação de mudanças na educação escolar afetaria diretamente os outros dois níveis, optamos por concentrarmos nosso trabalho nesse campo.
                   A assessoria à escola dessa aldeia Apurinã tem como objetivos a formação dos professores indígenas e a construção de currículos específicos em parceria com os mesmos, através de um acompanhamento periódico das suas atividades.
                   A metodologia do trabalho é baseada nos princípios de Paulo Freire, tanto no que diz respeito a tratar o aluno como sujeito da prática escolar, quanto a valorizar o universo cultural local na escolha de métodos e conteúdos das aulas. Integrado ao trabalho diretamente na escola está o trabalho de pesquisa que iniciamos junto a professores e alunos. Esse trabalho visa levantar informações sobre a cultura tradicional Apurinã, seus mitos, seus cantos, sua história recente e antiga, além de tentar compreender a situação sociocultural e lingüística atual da comunidade, com a preocupação de perceber as forças que atuam contra e a favor da manutenção da sua identidade étnica.

V

                 Uma das maiores preocupações de quem trabalha com educação escolar indígena é quanto à interferência na cultura de seu povo. Ficamos nos perguntando se podemos propor isso ou aquilo ao professor, ou se a implementação de alguma prática pode afetar negativamente sua cultura. Por esse motivo, é necessário que conheçamos bem a relação entre a cultura e a etnicidade nesta aldeia Apurinã.
                   Entendemos cultura como o modo de vida da comunidade, levando em conta o contexto e o processo histórico no qual o grupo está inserido, e etnicidade como o “sentimento” de perecimento a determinado grupo étnico. Estas duas categorias de percepção da realidade social são indissociáveis. A cultura é a base do referencial simbólico que forma a identificação étnica, participando assim do processo de construção e reconstrução da identidade.
                   Passamos, então, a nos perguntar até que ponto um trabalho de assessoria numa escola indígena pode afetar, positiva ou negativamente, a cultura, a organização social, e consequentemente a identidade étnica desse grupo de Apurinã.
                  Partindo deste questionamento podemos elencar alguns problemas específicos que surgem ao se transformar a educação escolar indígena, e através dela aspectos culturais deste povo. A primeira questão que se coloca é sobre o impacto da escrita numa sociedade quase completamente baseada na oralidade. Apesar do intenso contato com as cidades de Boca do Acre e Rio Branco, o seu convívio com a escrita se dá apenas através de cartazes de políticos, bulas de remédios, nomes nas camisas, nas certidões e documentos.
                 Como toda a situação que envolve a implementação de uma escola indígena diferenciada, também este problema da oralidade e da escrita é bastante ambíguo, apontando tanto para soluções quanto para perigos.
                A introdução real da escrita atende a várias necessidades da comunidade, entre elas a de possibilitar um conhecimento maior de outras realidades sociais, e também de reconstruir e perpetuar sua história através da fixação em símbolos gráficos. Por outro lado, essa fixação pode ter conseqüências fortes sobre uma cultura que se baseia numa memória oral e visual muito ricas, modificando assim toda esta forma própria de perceber o mundo.
                  Além disso, o conhecimento oral tem a característica de um processo, ou seja, é algo que não se cristaliza, as histórias vão se modificando conforme o tempo passa e novos fatos vão acontecendo. Já a escrita, fixa, engaiola a idéia que fluía nos ares e nas mentes.
                Outra questão que se coloca nesta experiência é a da recuperação da auto-estima individual e social dos integrantes da comunidade. A introdução de conteúdos relacionados à sabedoria do próprio povo e a utilização de métodos e de uma organização escolar baseada no seu estilo de vida, têm como objetivos resgatar essa auto-estima, este orgulho e a identificação positiva com seu povo.
                A importância deste tipo de filosofia na escola indígena é tanto maior quanto mais vai aumentando o contato com os centros urbanos, e consequentemente cresce a desvalorização de suas particularidades étnicas. A escola deve ajudar a formar uma consciência crítica do índio em relação à sua situação social, cultural e econômica, dando-lhe condições de reinterpretar os códigos que lhes são enviados.
              Por outro lado, a formação dos alunos pode acarretar o surgimento de uma espécie de classe, constituída pelos letrados em oposição aos analfabetos. Temos, portanto, que verificar também que impacto isso pode ter na organização social do grupo, considerando um aumento das diferenciações internas e também a possibilidade do aumento da emigração devido à vontade de adquirir mais conhecimentos ou mesmo pela maior possibilidade de trabalhar fora da aldeia.
              São esses pontos, já detectados, como outros que vão surgindo no decorrer do trabalho, que está nos interessando nesse processo de pesquisa/atuação. Temos, então, como resultados obtidos até o momento: 1) levantamento histórico da comunidade; 2) dados etnográficos coletados em pesquisa de campo; 3) dados referentes à observação do cotidiano escolar.
            O maior conhecimento da organização social, da cultura, das ambições e das transformações efetuadas por essa experiência junto aos professores indígenas, vai possibilitando que, não só possamos apontar algumas idéias em relação ao futuro, como também, até mesmo modificar, dentro do possível, algumas previsões, através da atuação dos professores no sentido de fortalecer a identidade étnica do seu grupo e a sua atuação no âmbito social amazônico e brasileiro.

Relátorio Elaborado (Eu e Célia) para o Departamento de Ciências Socias

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Cronistas em viagem e educação indígena - Nietta Lindenberg Monte


 “A certa altura da vida, vai ficando possível dar balanço no passado sem cair em auto complacência, pois o nosso testemunho se torna registro da experiência de muitos, de todos que, pertencendo ao que se denomina uma geração, julgam-se a princípio diferentes uns dos outros e vão, aos poucos, ficando tão iguais, que acabam desaparecendo como indivíduos para se dissolverem nas características gerais da sua época. Então, registrar o passado não é falar de si; é falar dos que participaram de uma certa ordem de interesses e de visão do mundo, no momento de particular do tempo que se deseja evocar.”

 Antônio Candido

Fonte: Internet  - arquivo PDF

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Aprendendo e ensinando uma nova lição: Educação Popular e Metodologia Popular

 Segundo Carlos Brandão, educação é uma das maneiras que as pessoas criam para tornar comum como saber, idéia, crença, aquilo que é comunitário, como bem, trabalho ou como vida. Mas pode existir também imposta por um sistema centralizado de poder, que usa o saber e o controle sobre o saber como armas que reforçam a desigualdade entre as pessoas, na divisão dos bens, do trabalho, dos direitos e dos símbolos.
A educação é uma fração do modo de vida dos grupos sociais que criam e recriam uma cultura. Produzem e praticam formas de educação para que elas reproduzam, entre todos os que ensinam e aprendem, o saber das palavras, códigos sociais, regras de trabalho, segredos da arte, da religião e da tecnologia de que qualquer povo precisa para reinventar a vida do grupo e dos sujeitos, sempre. Através de trocas sem fim, a educação ajuda a explicar - às vezes a ocultar e inculcar - a necessidade da existência de uma ordem.

Educação Popular

A educação popular difere de treinamento ou da simples transmissão de informações. Significa a criação de um senso crítico que leve as pessoas a entender, comprometer-se, elaborar propostas, cobrar e transformar(-se).
Não é um discurso acadêmico sobre um método, nem um produto acabado ou uma receita simples e mágica. Nem se confunde com dinâmicas de grupo usadas como instrumento tático para atrair pessoas. As dinâmicas são recursos necessários para estimular a participação e a cooperação.
Não é um método fácil que populariza a complexidade, embora faça o esforço criativo de traduzir conceitos abstratos em linguagem cotidiana, metáforas e símbolos. É um processo coletivo de produção e socialização do conhecimento que capacita educadores e educandos a ler criticamente a realidade sócio-econômico-político-cultural com a finalidade de transformá-la.
Como apropriação crítica dos fenômenos e de suas raízes, permite o entendimento dos momentos e do processo da luta de classes, presente na sociedade. A tomada de consciência ajuda a quebrar todas as formas de alienação, possibilitando a descoberta do real e de sua superação, a criação de uma estratégia, do novo, do futuro, da vida, sempre.
A educação fala de um caminho político-pedagógico que exige o envolvimento co-responsável de todas as pessoas participantes, na construção, apropriação e multiplicação do conhecimento. Essa experiência de aprender e ensinar só poderia interessar ao oprimido, já que no capitalismo não há lugar para ele e que, por isso, ‘só ele’ pode libertar-se e, ao libertar-se, liberta também seu opressor.
A educação popular fala da opção pelo pólo oprimido na luta de classes, e seu ponto de partida é a convicção de que o povo já tem um saber, parcial e fragmentado e que carrega em si o dom de ser capaz. Mas precisa refletir sobre o que sabe (não sabe que sabe) e incorporar o acúmulo teórico da prática social. Torna-se um instrumento que desperta, qualifica e reforça o potencial popular em sua luta para romper a lógica do capital e construir uma alternativa solidária.
Uma precondição para quem entra num processo de educação Popular é o amor pelo povo como entrega gratuita e solidária, livre de qualquer forma de piedade ou martírio. Nesse jeito de fazer política, as pessoas colocam sua alma, mesmo sabendo que o povo carrega muitas contradições. Significa convicção e paixão carregadas de indignação contra a injustiça e cheias de ternura pelo povo e por quem se dispõe a construir um mundo sem dominação. Uma vez apaixonada, a pessoa amante sempre descobre um jeito de agradar a pessoa amada e faz tudo para que a pessoa se desenvolva como gente e como povo. O maior sinal dessa opção é a militância e o companheirismo.

Processo Educativo

A educação popular é uma experiência que se realiza através de atividades formativas, que partem das necessidades sentidas, das ações praticadas e sempre em sintonia com as diversas dimensões das pessoas envolvidas.
Sua tarefa específica é relacionar o fazer (saber empírico) das pessoas com uma reflexão teórica (saber científico) e integrar a dimensão imediata (micro) com a dimensão estratégica (macro).
A educação popular é um processo educativo permanente que tenta concretizar suas convicções, princípios e valores, respondendo adequadamente em cada conjuntura.

Concepção metodológica dialética

A Educação Popular usa a metodologia indutiva - olha as partes e, por um processo de síntese (clarificar, sistematizar, perceber a lógica), supera a alienação e apreende o todo. Também usa a metodologia dedutiva - parte do geral para entender as particularidades influenciadas pelo global. Nos dois casos, é indispensável que o caminho seja participativo. Para superar qualquer forma de doutrinamento ou dogmatismo é indispensável que haja a interação de algumas balizas básicas:
* A necessidade dos(as) educandos(as) que se manifesta nas experiências particulares construídas e nas demandas apresentadas como anseio e reivindicação. O educando é parte distinta e integral, com necessidades, anseios, fantasias, limites, saberes, valores, ritmos, sexo, idade, raça... E nunca depósito, cliente, objeto de manipulação; muito menos o "sabe-tudo" do discurso basista.
*O querer dos(as) educadores(as), com sua visão de mundo, opção de vida, limites e acúmulo de conhecimentos da prática social que carregam (teoria). Entender os conceitos do depósito histórico é uma exigência para poder desmontá-los e recriá-los. O educador é um pólo do diálogo que, em geral, toma a iniciativa do processo. Não é o guia genial que faz a cabeça, presente no discurso autoritário e vanguardista nem o acessório. Sua tarefa é educar (ex-ducere=extrair), assessorar, facilitar o acesso a, ajudar a sistematizar.
* O contexto onde se dá o processo, pois o processo educativo acontece com pessoas situadas, mergulhadas numa teia de relações econômicas, históricas, culturais, religiosas, interpessoais, políticas e sociais. O diálogo se realiza num contexto estrutural e conjuntural conflitivo que facilita ou coloca obstáculos. É aí que o educador popular propõe sua ousadia contra o possibilismo, mas sem voluntarismo.
* O contrato entre as partes para a construção de uma proposta e definição de responsabilidades. O diálogo, como postura e prática do intercâmbio, contribui para evitar o utilitarismo entre as partes. É verdadeiro quando une afinidades, negocia interesses e, numa relação dialética, envolve as partes como protagonistas, mesmo exercendo papéis específicos de parturiente, de filho(a) ou parteira.

"Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento e gente de fogo louco que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam: mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar e quem chegar perto pega fogo". (Galeano)

Metodologia

Muitas vezes, as pessoas falam em metodologia pensando nas dicas de como fazer as coisas, nos procedimentos e dinâmicas de grupo ou ainda na seqüência de como deve seguir uma atividade. Acentua-se assim o caminho como uso de técnicas participativas. Mas, como qualquer método não é um instrumento técnico neutro, mas sempre ligado a uma visão de mundo e a um objetivo histórico concreto, a pedagogia também é marcada por um projeto de pessoa e de sociedade. Pode-se dizer, de forma esquemática, que existem três modelos básicos de metodologia que, numa contínua tensão, se repelem e se atraem.

Metodologia Formal-hierárquico-autoritária: SOBRE

A metodologia autoritária e dominadora visa a domesticação das pessoas para que elas se prestem a obedecer e a reproduzir um padrão de comportamento que serve a uma ordem e aos interesses de uma classe dominante.

Metodologia populista: PARA

Essa metodologia utiliza o discurso da metodologia popular, mas sua prática é autoritária. Visa manter as pessoas dominadas pela manipulação, quando a sensação de que são parte. Na prática, apresentando-se com a postura de pessoas boazinhas e tomando a iniciativa pelas outras, perpetuam nelas a dependência e o sentimento de inferioridade.

Metodologia Dialética-dialogal-libertadora: COM

A metodologia participativa (nem para, nem sobre, mas com as diferentes partes envolvidas) afirma que o modo de fazer já é, de certa forma, o que se quer fazer e o para que se faz. Visa despertar o senso crítico e promover o diálogo entre as partes para juntá-las num processo de construção coletiva, numa perspectiva solidária.
Partindo da convicção de que quem faz é quem sabe, mas quem pensa sobre o que faz faz melhor e quem faz faz também o sentido do que faz, a metodologia popular significa, ao mesmo tempo:
* Um caminho em que educadores tomam uma postura respeitosa e sugerem formas de participação e de colaboração.
* Um caminho cujo ponto de partida é a convicção de que toda pessoa é capaz, que as pessoas desenvolvem diferentes capacidades, que as pessoas oprimidas têm interesse em superar a atrofia física, mental e cultural a que foram submetidas e que a emancipação começa por quem se dispõe a um processo de transformação individual e social.
* Um caminho que tem como ponto de chegada a auto-estima das pessoas, sua necessidade de unir esforços, de organizar-se para a luta e a conquista de direitos e para a tarefa de assumir-se como sujeito do seu destino coletivo.
* Na prática, caminho, convicção e objetivo, mesmo sendo espaços diferentes, cada um é começo, meio e fim, pois carecem um do outro, numa relação de interdependência.

Qualidade e quantidade

A Educação Popular se concretiza no trabalho de base, pois tomar conhecimento não significa, necessariamente, tomar posição na luta social. O trabalho de base se faz a partir das necessidades sentidas e num processo de contínuo comprometimento das pessoas envolvidas. Porém, acreditar que as respostas espontâneas do povo já sejam alternativas transformadoras pode apenas significar uma posição tão autoritária (basista) quanto a própria imposição. Junto com o reconhecimento e o respeito às iniciativas populares, será necessário potencializar essas ações e estimular a construção de alternativas mais globais.
Numa conjuntura de resistência, nem sempre o trabalho popular conseguiu ser um trabalho com sustentação. Não se ampliou por causa da repressão ou pela ilusão de que as iniciativas localizadas já representavam uma saída de libertação. Além disso, havia o equívoco de pensar que os processos acompanhados do trabalho de base seriam incompatíveis com a massividade, no temor de perder a originalidade e os princípios. Faltava a dimensão do projeto político que, com base num tema gerador, articula-se, num processo crescente, uma rede de solidariedade. Nessa visão, as pessoas interessadas devem comprometer-se com a mobilização de um grupo que, por sua vez, contagia seus colegas de luta, de vida e trabalho, formando ondas multiplicadoras sucessivas.
Hoje, o desafio da realidade nacional exige uma multidão de gente capaz (quantidade com qualidade) que se disponha a responder às demandas de animação, elaboração, organização e articulação da luta política. Pela primeira vez, o centro da política brasileira pode ser o resgate da dívida social. Depende da capacidade de mobilização da sociedade.
O critério determinante para um projeto merecer investimento deveria ser sua eficácia, pela possibilidade de resultados concretos e duradouros. Por exemplo, o Programa de Segurança e Soberania Alimentar pode nascer exemplar por trazer, em si, a condição de universalizar-se, de cruzar os aspectos quantitativo e qualitativo, o concreto e o permanente, a eficiência e eficácia. Junto com a mobilização da sociedade, os destinatários do programa poderiam criar as condições reais de mudar a realidade. E, ao mudar o meio em que vivem, podem mudar as condições que geram as situações de exclusão de que são vítimas.
É tarefa da educação popular apoiar os oprimidos que se dispõem a contribuir com um processo solidário de transformação da realidade. Não se trata de excluir qualquer pessoa, mas da necessidade de priorizar pessoas, áreas e processos. Priorizar é limitar o leque de atendimento para concentrar recursos sobre uma parte que, sendo ponto de partida, tenha como horizonte a inclusão do todo.

Eficiência e eficácia

Diz-se que uma pessoa é eficiente quando faz o trabalho tecnicamente bem feito e que é eficaz quando realiza a tarefa adequada, com profissionalismo. Assim, alguns sinais indicam se a metodologia da educação popular, aplicada a um processo político-pedagógico (Trabalho , Base), segue bem:

* Anima e apaixona seus participantes porque resgata neles o elemento da identidade e da dignidade (auto-estima).

* Mobiliza porque rompe com a situação de dormência e a sensação de impotência geradas pela dominação e expressas no individualismo consumismo e fatalismo.

* Compromete as pessoas, numa dimensão integral da vida, em processos legítimos de luta pela vida para a emancipação das pessoas e na sua afirmação como sujeitos sociais.

* Capacita e qualifica, política e tecnicamente, os militantes através da experimentação e apropriação do conteúdo e do método.

* Produz a multiplicação criativa, com base numa parte que tem como meta a "massividade" e a realidade mais geral.

* Produz fermentação social e mobilização política ao fortalecer ações coletivas no enfrentamento dos seus problemas e na construção de soluções que expressem o poder da população.

* Incentiva a construção de espaços de participação popular, gestão democrática, afirmação da cidadania ativa, ampliação dos direitos e processos de controle social e de democratização do Estado.

* Incentiva e contribui para a canalização de processos legítimos de luta pela emancipação e pela vida.

* Facilita a articulação de práticas populares no rumo de um Projeto Alternativo e Popular de transformação social.

Orientações pedagógicas

Com base na intencionalidade do Programa Fome Zero e da Mobilização Social em torno dele, devem-se observar os seguintes procedimentos metodológicos:

* Aproximação e conhecimento da realidade social em que se vai desenvolver o trabalho, na perspectiva da educação popular, com a metodologia da observação participante, numa atitude de abertura e de escuta para a construção de diagnósticos das realidades locais, fomentando a solidariedade e o espírito de militância dos grupos em contato.

* Mobilização social que junte os esforços de articulação e formação (encontros, seminários, oficinas, reuniões formativas, grupos de estudos, círculos interativos, intercâmbios de experiências, mutirões de formação popular e caravanas) em torno de programas concretos, ligado à defesa da vida.

* Desenvolvimento de processos educativos que articulem a teoria com as práticas sociais, entidades e agentes envolvidos com diferentes modalidades formativas, instrumentos didático-pedagógicos e comunicação de massa, cultura popular de resistência e reinvenção das relações econômicas, sociais, culturais, ambientais etc.
* Construção coletiva do conhecimento fundamentada no processo dialético prática-teoria-prática, associando o conhecimento da realidade com sistematização das experiências e conhecimentos dos processos de articulação, formação e mobilização, concretizando o "aprender com a prática".

* Articulação das forças sociais com a estruturação de redes de educadores populares, entidades e movimentos sensíveis à necessidade de mobilização social para um amplo mutirão nacional em defesa da vida.

* Planejamento das diferentes ações que potencializem a dimensão educativa da ação, fazendo da articulação e da formação um fator efetivo da mobilização social e monitorando o plano com avaliações regulares.

Ranulfo Peloso - Membro do Centro de Educação

Fonte: ADITAL

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Arte da Capoeira - Camille Ardono

O que é a Capoeira


Os negros usavam a Capoeira
para defender sua liberdade.

Mestre Pastinha

Dança negra. Com muitos rituais. Brincadeira de movimentos com malícia. Na dança negra de pés no chão a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga. E de repente, ante os olhos surpresos do adversário, o gesto rápido. O ataque fulminante. Então, prostrado, o inimigo se dá conta de que foi vítima da mandinga. Isto, se ainda tiver vida...



“No tempo em que o negro chegava

fechado em gaiola

Nasceu no Brasil

Quilombo e Quilombola

E todo dia

Negro fugia

juntando a curriola

De estalo de açoite, de ponta de faca

e zunido de bala

negro voltava p’ra argola

No meio da senzala

E ao som do tambor primitivo

berimbau, maraca e viola

Negro gritava: - abre ala!

Vai ter jogo de Angola”

(Mauro Duarte/Paulo Cesar Pinheiro, Jogo de Angola)

Capoeira: a arte negra

A dança - enquanto forma de expressão corporal - possui uma linguagem onde cada gesto significa e representa idéias e sentimentos. Emoções. Sensações.

O jogo da Capoeira é a síntese da dança. A sua essência, disfarçada em brinquedo. Vadiação. Distração de quem busca extravasar cada função interior nos gestos exteriores.

É na dança que se manifesta a tradição milenar da cultura negra de reverenciar as origens. Isto ocorre cada vez que se repetem gestos ancestrais. Renovados. Conduzindo ao reconhecimento da necessidade de manter viva a ligação com os antepassados, que praticaram os mesmos atos. Nisto reside a grandeza da dança negra. Ritual. E no respeito aos que geraram a vida, a beleza maior.

O balanço dos braços, o arremesso dos pés, o meneio do tronco e dos quadris, a harmonia de todo o corpo em gestos que não perdem a continuidade. Como se fora um ininterrupto perambular pelo círculo, em estreita ligação com o solo.

A Capoeira consiste numa dança onde o emprego dos movimentos arriscados - dado à circunstância de camuflar possível contenda - envolve os participantes e contagia quem assiste. Como não se deixar empolgar pela combinação de bela plástica humana nos movimentos despojados, com o evidente fascínio da dança e a alegria de uma festa?

É ainda muito mais a dança da Capoeira. O contato com o chão, intenso como o vínculo dos filhos com a mãe. Que envolve e protege, criando a vida e assistindo a todos, silenciosa. Acolhendo a dança, que é também em seu louvor.

A postura reverente dos capoeiras uns com os outros, para com o jogo, a terra, o berimbau, o atabaque, se explica no propósito maior da dança: unir. Ligar estreitamente, como as mãos que se apertam ao final de cada jogo, na saudação dos camarás.

Luta negra. Com a força dos ritos. Preservando mitos. Participando ativamente da resistência comum às variadas formas de dominação: cultural, física... Bastião erguido em defesa da nossa identidade coletiva, a Capoeira não foi somente um fermento revolucionário - ela é realmente um instrumento de transformações, apesar do grande cerco que sofreu e sofre ainda hoje. Dos que tentam levá-la à padronização esportiva ou reduzi-la a mera forma de defesa pessoal, sugerindo sua definição como arte marcial.



“Dança guerreira

Corpo do negro é de mola

Na Capoeira

Negro embola e desembola

E a dança que era uma festa pro povo da terra

Virou a principal defesa do negro na guerra

Pelo que se chamou libertação

E por toda força, coragem e rebeldia

Louvado será todo dia

Que esse povo cantar e lembrar o jogo

de Angola

Da escravidão no Brasil”



(Mauro Duarte/Paulo Cesar Pinheiro)



A luta da Capoeira não acontece com objetivo de competição entre os camaradas. Quando o jogo degenera em luta explícita, já não ocorre a Capoeira. O objetivo da luta é tornar o capoeira senhor de si mesmo e integrado ao grupo. É no recesso da comunidade que ocorre o aprendizado e a prática do jogo, de forma coletiva e fraterna. Se às vezes isto não acontece, não se pode falar em Capoeira na plenitude; quando muito em adestramento nos movimentos básicos, de forma desvinculada dos objetivos e fundamentos da arte.

O ponto alto da luta sempre foi resistir. Contra o preconceito, a discriminação disfarçada. Contra oportunistas e aproveitadores astuciosos que se apropriam dos valores da nossa cultura e tentam adulterá-la, fazendo isto de tal forma que ao negro é mesmo vedado o acesso à manifestação. Assim, o que era coisa de negro pode acabar se tornando de alguns indivíduos. Que detêm o poder, confiscam o que lhes interessa e depois de adaptar às suas conveniências, comercializam como bem entendem.

A luta da Capoeira implica também na reação a este estado de coisas. Não é legítimo transformar a arte negra em esporte ou folclore, conforme os conceitos de algumas pessoas. Não podemos admitir a inovação das cores e graduações tiradas de qualquer coisa que não a própria arte. Ou a cópia de conceitos de hierarquia segundo manuais militares e culturas exóticas. Menos legítimo ainda é o estabelecimento de regras para o jogo da Capoeira aplicando conceitos extraídos de lutas alienígenas - geralmente chegadas até nós deturpadas pelos objetivos de exploração das academias e descaracterizadas pela indústria do cinema hollywoodiano. Contra tudo isso a Capoeira é luta. Mais que nunca reafirmando os valores culturais do povo que a criou.



“Capoeira vai lutar

já cantou e já dançou

não pode mais esperar...

Não há mais o que falar

cada um dá o que tem

capoeira vai lutar...

Vem de longe, não tem pressa

mas tem hora p’ra chegar

já deixou de lado sonhos

dança, canto e berimbau

abram alas, batam palmas

poeira vai levantar

quem sabe da vida espera

dia certo p’ra chegar

capoeira não tem pressa

mas na hora vai lutar

por você... Por você...”



(Geraldo Vandré, Hora de Lutar)



Luta negra. Presente no cotidiano dos morros, terreiros, favelas, praças e ruas. Companheira do trabalho e diversão das feiras e festas, acompanhando o negro em qualquer ambiente social.



Itinerários



“Fomos ao rio de Meca,

Pelejamos e roubamos

E muito risco passamos

e vela.

E árvore seca.

(...)

A renda que apanhais

O melhor que vós podeis,

Nas igrejas não gastais

Aos pobres pouco dais.

E não sei o que lhe fazeis.”





Gil Vicente,

Exortação da Guerra





Portugal, África e Brasil:

os relatos históricos





Para a melhor compreensão do período histórico onde se situa o descobrimento do Brasil e a conseqüente formação da nossa cultura, é indispensável reportarmo-nos aos relatos e narrativas deixadas por escritores portugueses da época.

A literatura lusa - constituída ainda no período medieval - alcançou o apogeu com Gil Vicente, Camões e Fernão Mendes Pinto, justamente na fase em que é completada a expansão do povo português no mundo. O Brasil, portanto, é contemporâneo dessa expansão, nela se inserindo tanto o fato primordial da sua descoberta e colonização, quanto o dos belos trabalhos produzidos pela talentosa literatura portuguesa terem por motivo inspirador os fatos decorrentes da sua descoberta - além da conquista na África.

A língua portuguesa, instrumento dessa literatura e que com ela se aprimorou, deriva do latim popular, que teria chegado à Península Ibérica no século III antes de Cristo.

Na história literária - assim como na história geral - encontramos divisões em épocas ou períodos, compreendendo fases de tempo em evolução cronológica e englobando conjuntos de obras literárias com características comuns. Nesse trabalho, os historiadores da literatura consideram se as obras obedecem aproximadamente à mesma ordem de valores estáticos, ao reuni-las com vistas à exposição histórica.

Segundo o Prof. Fidelino Figueiredo, dividindo a literatura portuguesa em eras, temos as seguintes: medieval (do século XII até 1502), clássica (1502 a 1825) e romântica (de 1825 aos dias atuais).

O período medieval da literatura portuguesa se caracteriza pela poesia, reunida em repositários coletivos (os Cancioneiros), que são os seguintes: o Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, o Cancioneiro Português Colocci-Brancuti e o Cancioneiro Português da Ajuda.

Esta fase medieval é geralmente considerada como finda no começo do século XVI - quando é representada a primeira obra teatral de Gil Vicente, o Monólogo do Vaqueiro, em 1502. Começa então o período clássico (já contemporâneo do Brasil), onde a literatura produz obras importantes para a compreensão da gente que realizaria a colonização, evidenciando o seu caráter e a perspectiva em que encaravam a nossa terra.

Na fase clássica encontramos os trabalhos literários que mais diretamente se relacionam à nossa história, abordando as conquistas na África, os costumes de Portugal, as viagens de descobrimento na América e análises e observações importantes acerca da sociedade da época.

Salientamos a importância da consulta às obras de Gil Vicente (1460-1536), fundador do teatro português, autor das farsas Juiz da Beira, Clérigo da Beira, Inês Pereira e Quem tem Farelos; dos autos da Barca da Glória, da Barca do Inferno e da Barca do Purgatório. Gil Vicente distinguiu-se ainda como poeta e cronista de costumes ao retratar a vida portuguesa do seu tempo.

Outro vulto de destaque para a compreensão do que era a gente portuguesa é Luís de Camões (1524-1580), não somente o grande poeta lírico do período clássico mas o mais importante poeta da língua portuguesa, como épico em Os Lusíadas, ou lírico, com as Rimas. Dramaturgo, distinguiu-se com as comédias El-Rei Seleuco, Anfitriões e Filodemo.

Muitos foram os poetas e romancistas deste período, cujo talento não se ofusca ante o infausto brilho das conquistas na África e no Brasil. Destacam-se: Bernardim Ribeiro (1475-1553), poeta e romancista, autor famoso de Menina e Moça; Francisco de Sá Miranda (1495-1558), poeta e teatrólogo: Antônio Ferreira (1528-1559), também poeta e teatrólogo; João de Barros (1496-1570), autor das Décadas da Ásia, prosador e historiador; Damião de Góis (1502-1574), autor da Crônica do Príncipe D. João; Fernão Mendes Pinto (1509-1580) viajante e prosador, autor do relato Peregrinação, de suas viagens ao Oriente; e Diogo do Couto (1542-1616), continuador das Décadas da Ásia, companheiro de Camões em Moçambique, autor do Soldado Prático.

À época, destacaram-se como historiadores mais especificamente do descobrimento e início da colonização do Brasil: Pero de Magalhães Gandavo ( ? - 1576), autor da História da Província de Santa Cruz e do Tratado da Terra do Brasil; Gabriel Soares de Sousa (1540-1592), autor do Tratado Descritivo do Brasil; e Frei Luís de Sousa (1555-1632), autor da Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.

Dentre os escritores brasileiros, um dos primeiros historiadores foi o Frei Vicente do Salvador (1564-1639), nascido na Bahia, o primeiro a fazer uso da prosa literária em sua História do Brasil, que somente seria publicada em 1889. Segundo o crítico José Veríssimo, ao fazermos a lista dos nossos clássicos, com certeza Frei Vicente do Salvador seria o primeiro.

Estes são alguns dos principais autores e trabalhos que nos permitem uma introdução à história do Brasil e seus problemas, com vistas a formarmos a nossa própria crítica do processo de surgimento da civilização brasileira.

Aos amantes da leitura, fica a sugestão para pesquisa e estudo.



As origens

São dois pra bater no negro

de pau, chicote e facão

p’ra se safar tem o negro

só dois pés e duas mãos

é a mão pelo pé

é o pé pela mão

bate na cara

derruba no chão



Sérgio Ricardo, Brincadeira de Angola



África: onde tudo começou...



As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da nação brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento de negros, brancos e índios no continente americano.

A terra descoberta aos olhos do colonizador seria o berço de uma nova cultura - fruto das peculiaridades do ambiente e da forma em que se processavam as relações entre os conquistadores europeus; os ameríndios - primeiros senhores do continente; e os africanos - trazidos à força para realizar todo o trabalho.

No entender do descobridor o novo mundo deveria ser explorado em todos os aspectos, como fonte supridora da necessidade de riquezas fáceis sentida na Europa. E nada mais natural que o emprego do trabalho escravo. De nativos e africanos. Afinal, a nobreza que governava o mundo ocidental gozava do privilégio de ser ociosa. Para as agruras de todos os serviços, somente seres inferiores, aí incluídos todos que não tivessem a pele branca.

A presença dos portugueses na África tem registro desde meados de 1430. Lá, o europeu incentivava astuciosamente as diferenças tribais, fomentando rivalidades entre grupos. Depois, adquiria os prisioneiros feitos por ocasião dos conflitos, negociando com exploradores de toda espécie a aquisição de seres humanos para o trabalho forçado.

A chegada dos portugueses significava destruição completa para os nativos da África - o provável berço da humanidade, segundo recentes estudos. Os africanos apresados eram obrigados a trabalhar nas plantações canavieiras das ilhas do Atlântico. À época da descoberta do Brasil, Portugal já vivia da exploração de colônias na África, Ásia e no Atlântico. Seu caráter já amolecera na aventura da escravidão. Luís de Camões, que via muito bem com seu único olho, se lamentava de ver sua pátria mergulhada “no gosto da cobiça e na rudeza/de uma austera, apagada e vil tristeza”.

Em 1441, Antão Gonçalves levou a D. Henrique dez negros que trocara por dez mouros colhidos na costa da África. Segundo Azorara, que além de chefe de expedições portuguesas que praticaram massacres nas terras africanas revelou pendores literários, manifestos em crônicas aduladoras, D. Henrique mostrou-se “ledo” ao ver os africanos. Não pelo número, acentuou o cronista, “mas pella sperança dos outros que podya aver”.

No ano de 1444 fundou-se a Companhia de Lagos, cuja finalidade era intensificar o tráfico de escravos. No fim do século, Portugal recebia em média 12.000 escravos por ano, provenientes a princípio de Guiné, São Tomé, Príncipe e mais tarde, de Angola, Moçambique e demais regiões africanas. A escravidão tornara-se a mais próspera indústria do país. E o empreendimento desumano cresceu de tal forma que cerca de um século após iniciado, o flamengo Nicolaus Cleynaerts, humanista que se encontrava na corte portuguesa como preceptor dos filhos de D. João III, fez as seguintes observações a respeito do reino ibérico:

“Tudo ali pulula de escravos, todos os trabalhos são executados por negros e cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio, existem em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses livres.”

Foi aí que entramos na história. Os interesses econômicos e ideológicos dos portugueses - “a dilatação da Fé e do Império” - segundo Camões -, não estavam voltados exclusivamente para o Oriente fértil das ricas especiarias, sedas, objetos de valor como tapetes, perfumes, produtos medicinais. Vasco da Gama retornara da Índia com um carregamento de pimenta que permitiu lucros de até 6.000%, quando vendido na Europa. Mas no seu Diário de Viagem ele contava ter percebido sinais seguros da existência de terras a oeste de sua rota. A Espanha já tinha descoberto novos mundos na sua tentativa de chegar ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal já tinha assegurado para si uma parte desse território, com a Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais conhecida como Tratado de Tordesilhas, assinado entre as duas potências de então, em 1494.

Não é absurdo supor que Cabral recebera orientação no sentido de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar a existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa de sua expedição. O descobrimento do Brasil é apenas um episódio da expansão marítima européia, no momento da transição do feudalismo para o capitalismo. As práticas mercantilistas e a predominância dos interesses econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos se refletem até no nome definitivo que a terra ganha, provocando protestos do cronista João de Barros: “Por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos”.

O início da colonização das terras brasileiras se deu sob o reinado de D. João III, conhecido como O Colonizador em razão das expedições que organizou. Em 1530 uma nova esquadra veio para o Brasil sob o comando de Martim Afonso de Sousa, com instruções similares àquelas emitidas aos navegadores que o antecederam: as suas cinco embarcações explorariam o litoral compreendido entre o Maranhão e o Rio da Prata, capturando os contrabandistas encontrados ao longo da Costa do Pau-Brasil. Entretanto, eram mais amplos os objetivos específicos do Capitão: fundamentar a efetiva invasão da terra, implantando núcleos de povoamento dos portugueses. Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso, relata como isso aconteceu, em seu ‘Diário’:

“A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas: e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas a dentro pelo sertão, à borda de um rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficinas, e fez tudo em boa obra de justiça.”

Em meados de 1532 foi introduzido no Brasil o cultivo da cana-de-açúcar e no seu desenvolvimento os colonos fixaram-se à terra, adquirindo glebas e se instalando com plantações e engenhos. Surgiram as duas primeiras vilas brasileiras no mesmo ano: São Vicente e Piratininga. Desobedecendo às ordens reais as povoações não se localizavam na chamada ‘Costa do Pau-Brasil’: revelava-se a prioridade dos portugueses - que era a busca dos metais preciosos. A escolha do local para a fundação das vilas facilitava a procura das minas do Peru e do Paraguai, à época em conquista - a ferro e fogo! - pelos espanhóis chefiados por Francisco Pizarro, que destruiriam o Império Inca.

A sede da riqueza dos metais levou os lusitanos a explorarem o estuário platino, organizando entradas com destino ao interior, saindo de Cananéia e Guanabara. A entrada que partiu de Cananéia foi dizimada pelas populações indígenas da região do atual Paraná, mostrando que a dominação das novas terras não seria uma tarefa fácil.

Quem era a gente portuguesa que se propunha a empreender uma tarefa que não se apresentava como das mais fáceis? Àquela altura, segundo Fernando Palha, Portugal importava tudo, desde o pão que comia até a lã que fiava. Nenhum português queria fazer nada.

“A prática bissecular da pilhagem no seu próprio país (os impostos escorchantes), a aventura oceânica e o tráfico negreiro, tudo isso minou a resistência moral do povo, dando-lhe até repugnância pelo trabalho.”

Como o Brasil só era habitado por silvícolas, ninguém queria vir para cá - além dos que seriam proprietários das terras. Francisco de Sá Miranda, grande poeta português, mas inegavelmente dominado pela ambição, refere-se ao fascínio das especiarias da Ásia e da África - que o Brasil não tinha - com estas palavras: “Ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa.”

Antônio Ferreira, poeta renascentista, retrata bem o espírito da época em Portugal, a ambição do reino pelos metais preciosos: “Tudo obedece a este só Tirano/Esta é a idade que chamaram de ouro/Tanto valho, Senhor, quanto entesouro.”

Sobre o caráter da nobreza e do povo português ao tempo da descoberta e exploração, fala melhor o holandês Cleynaerts. Diz ele: “Se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista (...)”

E prossegue Cleynaerts ainda mais direto em suas considerações: “Em Portugal somos todos nobres, e tem-se como uma grande desonra exercer uma profissão qualquer.”

Diogo do Couto também se queixou: “(É) muito antiga esta miséria portuguesa de não saber dar lugar às virtudes nem engrandecer honrosos pensamentos.”

Quanto à moral da nobreza - a começar pela família real, que tinha origem bastarda - era a pior possível. Frei Luís de Sousa disse que nela “o vício era posto a cavalo”.

Revela Fernão Lopes que D. Pedro I (de Portugal) confessara um dia a Nuno Freire que alguém lhe dissera ter ele um filho de nome João que subiria muito alto, mas ele próprio não sabia qual fosse, pois tinha vários filhos com o mesmo nome, inclusive um deles com a bela Inês de Castro...

Apesar da ausência de ouro e prata, São Vicente adquire contornos definitivos: a primeira unidade produtora de açúcar - o Engenho do Senhor Governador - foi instalada em 1533. Passado um ano chegam as primeiras cabeças de gado provenientes de Cabo Verde.

Logo ficou evidente a insuficiência dos núcleos isolados de povoamento para assegurar o domínio português. A maior extensão do litoral brasileiro continuava à mercê de incursões estrangeiras.

É hora de D. João III mais uma vez justificar o cognome de Colonizador: seguindo conselhos de um descendente de colonos das ilhas do Atlântico, Cristóvão Jacques, do reitor da Universidade de Bordéus e de outros destaques da corte, resolve implementar a colonização. A tantos bons conselhos se acrescentou a cobiça, objetivamente: manter o monopólio oriental era muito dispendioso e a notícia da descoberta de ouro e prata na América Espanhola valorizou ainda mais o novo mundo.

CONFIGURAÇÃO GERAL DA CULTURA ASHENINKA


INTRODUÇÃO



O presente trabalho tem por finalidade estudar os diferentes aspectos que constituem a cultura Aseninka, procurando reunir e discutir os dados pertinentes a cada componente sócio-cultural. Neste sentido procurou-se levantar e analisar dados referentes à localização, demografia, classificação lingüística,
denominação, organização econômica, organização social, sistema de parentesco, mitologia e xamanismo. O conjunto destes itens constituirão a especificidade cultural Asheninka.

1. Localização

Tradicionalmente os Asheninka vem habitando territórios compreendidos pelos paralelos 9 a 13 de latitude sul e de 72 a 75 de longitude (west of Greenwich). Estes territórios são constituídos pela selva central peruana e pelas colinas e montanhas próximas a cordilheiras andina. A área partilhada pelos Asheninka varia de 110 a 150 mil km de extensão, incluindo as ocupações em território brasileiro. Na selva central peruana habitam as margens e afluentes dos rios Apurimac, Tambo, Ene, Chanchamayo, Pichis, Pachitea, Baixo Urubamba, Alto Ucayali e afluentes. Habitam também as zonas do Gran Pajonal e de Sátipo. Seus territórios na República Peruana estão situados nos Departamentos de Loreto, Cuzco e Madre de Dios. Em território brasileiro localizam na Bacia do Juruá, junto aos afluentes Moa e Breu, e no alto Rio Envira e seu tributário Riosinho, nos municípios de Cruzeiro do Sul e Feijó, Estado do Acre. O território Asheninka limita-se ao sul e ocidente pela Cordilheira dos Andes com elevações superiores a 1500 metros de altitude; ao oriente e ao norte com a selva da Amazônia meridional e ocidental, habitada por grupos das línguas pano e aruak, como os Machiguenaga, Piro, Cunibo, Cushibo, Kulina, Kaxeinawá e outros. Os Asheninka brasileiros limitam seus territórios com os Kaxinawá, Kulina e tribos arredias que habitam os altos rios Jordão e Envira.

2. Demografia

Não há segurança em relação aos dados sobre a população Asheninka, devido a imprecisão dos métodos de levantamento utilizados, a inacessibilidade ao seu território, a amplitude de objeto dos trabalhos realizados e a confusão feita pelos estudiosos entre os Asheninka e os povos limítrofes e vizinhos. A inexatidão e insegurança dos dados demográficos aumenta em relação as fontes históricas.

Os dados disponíveis são contraditórios, parciais e estimativos. OSMBELA estimulou existirem em 1986 aproximadamente 20.000 indivíduos. A sua estimativa, entretanto, certamente considerou membros de outros grupos (1). CIPRIANI dava aos Asheninka apenas 2.000 pessoas ao máximo. Sua estimativa dava conta apenas dos Asheninka do Chanchamayo e do Gran Pajonal (2). EBERHARDT, VON HASSEL E NORDENSKJOLD elaboram estimativas que variavam de 10.000 a 15.000 indivíduos (3). GRUBB E FAST acreditavam em cerca de 30.000 à 40.000 pessoas (4). Um censo de 1940 considera um total de 350.000 índios na selva peruana, mas não especifica a população de cada grupo lingüístico. Segundo o antropólogo ROWE os censo são cálculos aproximativos e de pouco valor (5).

De acordo com VARESE é difícil aderir a quaisquer desses cálculos, mas, coloca como número que pode ser o mais aproximado da realidade a ordem de 20.000, considerando os machiguenga excluídos por constituir grupo lingüístico distinto (6). Em território brasileiro existem cerca de 370 indivíduos distribuídos em aproximadamente 13 aldeias, constituindo as do Rio Amônea a maior concentração populacional.

3. Classificação lingüística

Os Asheninka sempre foram considerados como pertencentes à família Aruak.

Foram considerados por Brinton, em 1891, como integrantes do “stock” lingüístico “Arahuaco”, que colocava com hipótese de que a zona do Gran Payonal e os rios adjacentes podiam constituir o centro de dispersão do “stock” inteiro (7). RIVET E TASTEVIN, consideraram os Asheninka como um dos grupos “Aruak pré-andinos”. Classificaram os grupos que habitam os pés dos Andes como sendo “Aruak pré-andinos”: 1. Os Pero ou Chontakiro do Ucayali, os Kuniba do Juruá e os Kanamaria . 2. Os Kampa ou Anti, ou Cachiganga ou Katongo. 3. Os Ipuriná e os Marawan. 4. Os Mareteneri, os Inapari e o dialeto Pajaguara (8). LOUKOTKA também utilizou a denominação pré-andina a sua classificação das línguas da América do Sul. Segundo o lingüística o Campa é um dos 14 idiomas classificados como “Aruak pré-andinos”. Confunde os Machiguenga com Kampa (9). Na classificação de MASON, 1950, há uma separação clara entre os Campa, os Machiguenga e os Piro (10). De acordo com STEWARD E FARON, baseados na classificação esquemática de J. GREENBERG, incluem os campa dentro da subfamília aruak e, esta, dentro da família andino-equatorial (11). SHELL, em 1958, congrega na família arawak pré-andina os Piro, os Machiguenga, os Campa, os Masco (Mashco), os Amuesha e os Nomatsigengua (também tidos como um subgrupo Campa) (12).

É consenso entre os Lingüistas de que os Asheninka pertencem à família Lingüística arawak, do Lingüístico Aruak.

A língua Asheninka conforme as regiões de origem dos seus falantes, possue variações. É possível detectar-se diferenças léxicas e fonológicas. De uma foram geral podemos afirmar que a língua Asheninka constitui-se dos seguintes fonemas: a, e, i, o, h, k, m, n, p, q, r, s, t, v, y, s (=sh), c (=ts), c (=tsh). Como todas as línguas ameríndias é polissintética. Alguns aspectos gramaticais observados dão ao Asheninka apenas dois tempos verbais: o da ação realizada e da ação não realizada; dois gêneros; masculino-animado e feminino-inanimado; a pluralidade não é indicada; os numerais são pouco desenvolvidos e são representadas por alguns termos bem definidos. As operações matemáticas não fazem parte do universo lingüístico tradicional dos Asheninka. Seu uso é recente e decorre das relações com os Brancos, cuja complexidade exige conhecimentos novos e instrução em língua espanhola e portuguesa. A escrita também não faz parte do contexto Lingüístico tradicional dos Asheninka.

4. Denominação

O termo Asheninka constitui-se autodenominação e significa literalmente “nossos camaradas”, e, ainda, povo, gente, compatriota, os atziri (seres humanos) (13). Este termo é utilizado pela maioria dos indivíduos para identificar a sociedade a que pertencem, uma entidade detentora de uma tradição comum, de um território, de uma cultura e organização própria, de língua particular, etc...
Historicamente os Asheninka receberam de parte da sociedade colonial espanhola do Vice-Reinado Espanhol do Peru e da sociedade nacional da República do Peru uma série de denominações. Nos séculos XVI e XVII eram conhecidos genericamente pelos designativos “Chuncho” e “Anti”, termos que serviram equivocadamente para denominar tanto os grupos tribais da selva como os da montaña. Outro termo utilizados pelos conquistadores e andinos para designar os grupos da selva foi “Pilcozones”. O termo “Campa” não constitui palavra da língua Asheninka e aparece em documentos missionários da segunda metade do século XVII. Sua origem é incerta (14). Parece possuir conotação depreciativa. É utilizado pelos Brancos, mas não pelos Asheninka para designar a si mesmos; apenas como uma palavra estrangeira reconhecida.
Atualmente permanece o termo Campa como denominação mais usada para identificar os Asheninka (15). Entretanto, para o grupo, o único termo utilizado continua a ser o da autodenominação Asheninka.
A confusão e ambivalência das denominações atribuídas aos Asheninka denotam o descaso e o etnocentrismo a que foram historicamente relegados . A manutenção da autodenominação Asheninka ao longo de mais de quatro séculos de conflito com as sociedades espanhola, peruana e brasileira refletem o grau de resistência oferecido por esta sociedade contra os mais diversos processos de denominação, inclusive o Lingüístico.

5. Organização Econômica

Como a maioria dos grupos da selva amazônica e da América do Sul praticam a agricultura de corte e queimada (coivara). Esta prática também é conhecida por cultura de roça. Estudos de etnologia, geografia humana e econômica agrária demostram que existe uma profunda vinculação entre as sociedades indígenas e a agricultura de roçado e coivara.
Este tipo de agricultura praticado tradicionalmente na Amazônia também é conhecida como agricultura itinerante (16). Esta modalidade implica em cultivar-se de duas a cinco vezes uma mesma área e, em seguida, abandonadá-la à vegetação rasteira de rápido crescimento. Enquanto isto são desenvolvidos novos roçados e novos cultivos em terras virgens, relativamente próximos. Esta prática permite a regeneração natural da estrutura de solos, sobretudo da camada de humus das áreas esgotadas. Quando a nova estiver exaurida, ou seja, após aproximadamente cinco anos de cultivos, os agricultores tornam à área antiga para recomeçar o ciclo. A mudança de roçado e habitações nem sempre ocorre concomitantimente. Às vezes o novo roçado dista apenas 300 a 500 metros do antigo.
Nem sempre o esgotamento do solo é razão de mobilidade habitacional. Existem outras razões de ordem social e religiosa responsáveis pelos deslocamentos. A interação entre uma e outra causa ainda foi suficientemente investigada (17).
O principal item da agricultura Asheninka e da sua dieta alimentar e o kawiri (macaxeira, yuca, aipim, mandioca). Os Asheninka distinguem e cultivam até trinta variedades de mandioca, sendo a Manihot sclenta a mais aparecida. Compõe a base alimentar quotidiana. Consome-se cozida, assada ou como bebida fermentada (piarentsi ou massato).
Outras plantas completam as necessidades de subsistência das aldeias Asheninka. Entre elas o feijão peruano ou feijão de praia (matshaki. Os Asheninka conhecem sete variedades), o mamão (mapotsha), bananas (parenti),
Milho (tshinki),amendoin (inki), batata doce (koriti), cana de açúcar (tshanko), abacaxi (tivana), melancia (santira) limão (irimaki), laranja (naranka),ingá (intsipa),etc.
Além das plantas de uso alimentar os Asheninka cultivam plantas para o vestuário, o algodão (ampéhi), e o genipapo (ana); plantas para tinturaria, oyepári, iyórita, oyétshari; plantas de uso ritual: coca (koka), tabaco (potsharo), cipó Banistereopsis caapi (kamárampi, hananerótsa), chacrona (hayapa); ervas madicinais , o Cyperus piripiri (ivenki), o pinistsi, etc; ervas venenosas utilizadas nas pescarias e caçadas, kómo, pitishi e o vakashi (18).
As atividades de caça e pesca complementam a subsistência, fornecendo as proteínas necessárias para completar a dieta alimentar do grupo (19). Entre os peixes mais apreciados estão o mandi, o jundiá, a traíra, o surubim, o tambaqui, etc. A proteína animal é obtida de répteis, mamíferos e aves silvestres, tais como o jacaré, o lagarto, a paca, a capivara, a anta, o queixada, o veado, o macaco, o jacamim, o nhambú, o jabuti, o tracajá, etc.
A coleta constitui tarefa de jovens, crianças e adultos tonto do sexo feminino, como do masculino. Os principais itens de coleta são pupunha, cacau silvestre, o mel, o óleo de capaíba e animais como o jaboti e o tracajá.
A divisão social do trabalho é manifestada sobretudo na distribuição sexual de atividades. Na família conjugal Asheninka compete aos homens caçar, pescar, coletar, colher, preparar, limpar e plantar os roçadores; construir as habitações; manufaturar os equipamentos de caça e pesca (arco, flechas, arpões); construir embarcações (ubás, remos, jangadas, etc); coordenar e chefiar os empreendimentos coletivos (pescarias, caçadas, rituais e negócio). Ás mulheres cabe executar diariamente as atividades de cozinha e preparo dos alimentos; a colheita de kaniri para a refeição diária; cuidar de todo o processo de tecelagem dos kusmas, bolsas e outras peças; colher o algodão, limpar, fiar, tecer e tingir; fabricar cerâmicas, esteiras, cestas e outros utensílios de uso doméstico; cuidar dos recém nascidos e das crianças.
Existem algumas atividades que requerem a participação de um grande número de pessoas. As pescarias, por exemplo, reúnem pessoas de diversas famílias e, às vezes, até de outras aldeias. Utilizam-se ervas, venenosas e anestesiantes que, após maceradas, formam uma espécie de pasta a ser dissolvida nos locais de água parada, geralmente igarapés ou lagos.
A propriedade e posse da terra está restrita ao roçado e à casa. Não existe a figura jurídica de propriedade na cultura Asheninka. Os equipamentos, o roçado, etc são de quem os utiliza, os confecciona e prepara. As áreas de caça e pesca pertencem a todos. Os artefatos produzidos pela família (arco, flechas, kusmas, esteiras, tambores, cachimbos, etc) são de uso individual e privativo e podem ser permutados livremente por gêneros alimentícios ou outros utensílios. Existe solidariedade entre as famílias que já estão estabelecidas e as recém chegadas.
As atividades comerciais são freqüentes podendo ser constatadas entre as diversas aldeias e entre os Asheninka e os regionais proprietários de estabelecimentos comerciais urbanos, regatões e fazendeiros. Entre os Asheninka da-se uma relação simples de troca, conforme a necessidade e o desejo dos possuidores dos produtos e utensílios a serem trocados. Com os regionais a atividade comercial é mais complexa. Geralmente vendem as colheitas de feijão, ou o produto de extração madeireira (mogno, cedro. No passado, seringa) segundo as cotações do núcleo urbano de referência comercial mais próximo (no Acre, Feijó e Cruzeiro do Sul; no Amazonas, Eirunepé). Resulta desta transação pagamento em moeda e em espécie. Com o dinheiro apurado na venda, são adquiridas bens industrializados disponíveis no mercado local (óleo comestível, óleo lubrificante, gasolina, querosene, sal, açúcar, café, lanternas, roupas, perfumes, rádios, toca discos, etc). A atividade de troca e comércio constitui uma constante na cultura tradicional Asheninka.

6. Organização Social e Sistema de Parentesco.

A família elementar ou conjugal é a base da sociedade e da economia Asheninka. Marido, mulher, filhos, filhas. Entretanto, esta base ou unidade social não permanece estática. Existe flexibilidade. A família conjugal Asheninka insere-se numa rede de relações que vai desde os vínculos de parentescos propriamente ditos até vínculos de natureza comercial que são estabelecidos entre as aldeias Asheninka, com outras sociedades indígenas (Kulina, Kaxinawá, Machiguega, Cunibo, etc). e com os segmentos regionais da população nacional peruana e brasileira (regatões, marreteiros, seringueiros, caucheiros, madeireiros e comerciantes).
O casamento constitui um fato cultural complexo. Representa a instituição social responsável pelo engendramento de novas famílias e pelo prolongamento das famílias já constituídas. O matrimônio estabelece também vínculos de parentesco diferentes das relações consagüíneas.
A sociedade Asheninka como todas as sociedades possui mecanismos para regular o casamento consangüíneo, de forma que a harmonia do grupo e a cooperação familiar não sejam perturbadas. O principal mecanismo regulador reconhecido universalmente pelas culturas é a proibição do incesto (20).

O casamento ideal ou preferencial entre os membros da sociedade Asheninka é o que tem como esposos primos cruzados, mas quando um certo primo cruzado não está disponível, qualquer pessoa do sexo oposto pode ser tomada como consorte, desde que não seja parente próximo.

O casamento é admitido sem cerimônia alguma após o interessado obter a aprovação dos pais da moça ou seus tutores, presumindo-se que ela não seja contrária à aliança.

O casamento implica uma obrigação por parte do casal em residir próximo aos pais da esposa. A norma da uxori-localidade é rigorosamente observada, apesar de possuir duração determinada. Neste período o genro prestará serviços, na agricultura ou em outras atividades aos pais da consorte. Alguns informantes de aldeias do Alto Rio Envira revelaram ser esta prática uma espécie de pagamento ao sogro pela cessão da filha (21).
Apesar da família conjugal Asheninka ser na sua maioria uma família monogâmica, há incidência de casos de poligamia associada aos homens de maior prestígio no grupo (22). O sororato é encontrado em algumas aldeias, porém sua ocorrência é mínima.
Não existe famílias extensas, linhagens, sibs ou metades, ou seja, o parentesco consangüíneo e grupos de residência estão praticamente ausentes. Apesar das famílias conjugais Asheninka possuírem uma tendência atomística, as relações de parentesco são reconhecidas por toda a tribo. A rede de interrelações sociais constitui uma rede primária de parentesco. Os indivíduos são mais identificados em termos das suas relações de afinidade ao falante, ou pessoa conhecida, do que pelo nome (apelidos geralmente dados na infância). Os Asheninka possuem um sistema de parentesco que pode ser considerado como pertencente ao tipo Iroquês. A reprodução, criação e educação das crianças segue algumas normas de natureza cultural. Ambos, pai e mãe, comem uma seleta variedades de alimentos durante a gravidez, para assegurar um parto fácil e um herdeiro normal (23). Em seguida ao nascimento, os pais permanecem vários dias em casa. Abstém-se de comer alguns tipos de alimentos que acreditam prejudicar a si e ao recém nascido. As observâncias vão sendo progressivamente levantadas e terminam quando a criança começa a andar (24).
Entre os Asheninka a puberdade de uma moça cumpre uma série de procedimentos culturais: é confinada por vários meses a um recinto na casa principal, onde é atendida pela mãe e recebe uma dieta alimentar restrita. Passa o tempo fiando algodão. Durante este período não pode conversar com qualquer homem, nem pode permitir que qualquer homem veja sua face. No final desta prova terá os cabelos cortados e será pintada com ána (Genipa oblongifolia). A seguir ela se manifesta e é honrada com alguma festa. A partir de então a jovem moça está pronta para o casamento (é matrimoniável). Aparentemente não existem ritos de puberdade para os jovens, apesar de haverem sido constatados alguns comportamentos diferenciais em jovens nesta idade (25).
A terminologia de parentesco Asheninka descreve com precisão os ascendentes e descendentes de Ego de duas a quatro gerações cada. Alguns termos são aqui consignados: chaine e nato (itzá),são aplicados aos avós de Ego; apa e ina constituem os pais; koki e airontsi designam tanto os tios maternos como os tios paternos da geração acima de Ego. Na mesma geração, os termos iyenti e tsiontsi indicam irmão e irmã respectivamente; nojina, esposa; naro, Ego; ani, cunhado; tsionti e nojinatsori, cunhados. A geração imediatamente abaixo de Ego tem noshinto, filha; notomi, filho; noti e motonissori, sobrinhos; anioki e noshintotsori, sobrinhas. A segunda geração abaixo de Ego é expressa por nosaro, neta; chaine, neto. A terceira geração, sameti e niompare, bisnetos; campiro, compatiro, niomparo, bisnetas. A quarta geração, niomparo, tataraneta; niompari, tataraneto.

7. Religião, Mitologia e Xamanismo.

A cultura Asheninka é fortemente marcada pela organização religiosa. Todas as instâncias, da economia ao social, evidenciam uma relação com o nível espiritual (26). Embora não seja possível precisar a intensidade da religiosidade no quotidiano, as condutas, explicações místicas e rituais são uma constante.
A mitologia Asheninka revela uma grande variedade de seres sagrados e forças existente no cosmos e na natureza, bem como os eventos que, sucessivamente, vão se integrando ao seu universo cultural; exemplo: a origem e presença dos Virakocha (os Brancos). Para os Asheninka o mundo forma um conjunto sagrado de forças e potências que são manifestadas através dos mitos, narrativas tradicionais presentes ao quotidiano.
A instituição básica do sistema religioso dos Asheninka é conhecida como fraternidade dos xamãs. Constituem uma categoria de médico-religiosos que agem, individualmente, para compelir pretensões mútuas. São denominados shiripiari, sendo o mais aperfeiçoado conhecido como antiáviari. São pessoas adultas do sexo masculino que conseguem o status de shiripiari, após um ano de árdua e rigorosa aprendizagem que compreende abstinência de todas as atividades sexuais, restrições alimentícias, uso contínuo de narcóticos (tabaco e ayuasca), etc.
Na qualidade de líder religioso o shiripiari dirige os rituais de ayuasca, organizados por eles com muita freqüência. A ayuasca ou kamarampi é preparada através da ebulição da mistura de um tipo de trepadeira (Banisteriopsis sp) (27) e de folhas da planta silvestre horóva. Ao cair da noite o shiripiari bebe uma certa quantidade do Kamarampi e a seguir passa para os demais que se reúnem na sua casa. Quando o efeito começa, o shiripiari entoa cânticos os quais serão acompanhados pelos presentes até cessar a influência do narcótico. Segundo testemunho de um shiripiari do Alto Rio Envira, ao cantar, ele dialoga e repete o que os espíritos bons estão cantando. Nestas cerimônias os espíritos bons dançam e cantam na miração (visão produzida pela ingestão do Kamarampi).
Como médico o shiripiari é frequentemente requisitado para examinar pessoas que se encontram acometidas de algum mal. Ao examinar o paciente com o intuito de diagnosticar a causa da doença, o ele procede soprando tabaco sobre a parte afetada do corpo e, em seguida, a succiona. Com base nesta técnica de sucção apresenta o seu diagnóstico. Ele pode atribuir a doença ao demônio, Kamari, a uma bruxa humana ou não humana, matsi, ou a uma alma perdida (28). O shiripiari enquanto médico examina, prescreve e diagnostica, mas deixa por conta dos familiares dos pacientes tomar medidas necessárias à cura.
As mulheres possuem amplo conhecimento de ervas. Algumas chegam a examinar pacientes e aplicar a técnica chamada tsionkanci que consiste na introdução de pedras incandescentes em um pote de água com folhas selecionadas para produzir vaporização. O paciente posta-se sobre o pote e o vapor sobe sob sua roupa. No final o pote é examinado pela mulher à procura de objetos que se despreendem do corpo do paciente para dentro do pote, similar aos extraídos por sucção pelo shiripiari.
Os shiripiari são respeitados e gozam de grande prestígio no grupo. Constituem o recurso extremo em épocas de doenças graves. São os únicos que podem comunicar-se como os espíritos; interpretar e narrar mitos; são autoridades em crenças cosmológicas; presidem rituais; indicam regras e observâncias, etc. Seus poderes advêm do contìnuo consumo de tabaco e Kamarampi, que lhes permite falar com espíritos, prever fatos,”viajar ao longe”, etc. Existem shiripiari que possuem contato como espíritos maus, os jaguari da noite. Seus espíritos transformam-se em jaguare que atacam as pessoas que dormem. As rivalidades entre shiripiari produzem acusações desta natureza. Contra um shiripiari não é utilizada a violência.

CONCLUSÃO

As considerações sobre os diversos aspecto que integram a totalidade sócio-cultural Asheninka permite inferir as seguintes conclusões:

ª O termo “Asheninka” significa “nossos camaradas”, “nosso povo”, “nossa gente” e constitue autodenominação pela qual os Asheninka se identificam e se reconhecem. Os designativos “Campa”, “Pilcozones” e “Chuncho”, constituem gentílicos pejorativos e estígmas atribuídos pelos segmentos regionais da sociedade nacional peruana e brasileira.
b. Os Asheninka ocupam uma área territorial não contínua de cerca de 150 mil km quadrados, constituída de regiões serranas e de planície amazônica, em território peruano e brasileiro. Suas aldeias localizam-se, no Brasil, junto ao curso Superior do Rio Juruá e seus afluentes Breu e Amônea, e do Alto Rio Envira e seu tributário Riosinho; no Peru às margens e afluentes dos Rios Apurimac, Ene, Tambo, Chanchanyo, Pichis, Pachitea, Baixo Urubamba, Alto Ucayali, e as zonas do Gran Pajonal e Satipo.
c. Apesar da falta e confusão de dados demográficos estima-se existir cerca de 30 mil indivíduos nação Asheninka.
d. Os Asheninka constituem uma sociedade cujo idioma, o Asheninka, pertence ao tronco lingüístico aruak e é falado através de diversas variações dialetais.
e. Como a maioria dos grupos que habitam a selva amazônica os Asheninka desenvolvem uma agricultura de subsistência baseada na técnica de corte e queimada (coivara), obedecendo o ciclo agrícola itinerante, cultivam produtos agrícolas (mandioca, feijão, arroz, banana, mamão, etc) e complementam sua dieta alimentar como produtos de caça, pesca e coleta. Para obetenção de bens de consumo junto aos regionais praticam o extrativismo madeireiro.
f. A organização social Asheninka tem por base a família elementar ou conjugal. O casamento representa a instituição social responsável pelo engendramento e prolongamento das relações familiares. Ao casar-se genro passa a fixar residência junto aos pais da esposa, os sogros. O casamento preferencial é entre primos cruzados. São constatados casos de poligamia, inclusive na forma sororal. Existem prática rituais de puberdade em relações às mulheres. O sistema de parentesco Asheninka é de

tipo Iroquês.

g. A cultura Asheninka é fortemente marcada pela dimensão religiosa. A mitologia é rica e vasta e diz respeito a todos aspectos de organização social, econômica e cultural, dos assuntos mais simples aos mais complexos. O Xamanismo constitui uma instituição importante na sociedade Asheninka,

Tendo o Xanã funções religiosas e médicas.

Estes caracteres formam um conjunto sócio-cultural e denotam uma totalidade cujas instituições encontram-se inter-ligadas e integradas. A formação sócio-econômica Asheninka constitui uma estrutura e um sistema dinâmico, no qual, os Asheninka, reconhecem-se como sociedade diferente e estão inseridos dentro de um contexto ecológico peculiar e de uma cultura específica, que se opõe, em maior ou menor grau, às demais sociedades tribais vizinhas, e às formações sócio-econômicas regionais peruanas e brasileiras. Nesta perspectiva torna-se possível compreender e definir sociedade e cultura Asheninka.

NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


(1) OSAMBELA, Claudio. El Oriente del Perú. Boletin de la Sociedad Geográfica de Lima. Lima, (I. VI. Nos. 4, 5, 6): 220, 1986.

(2) CIPRIANI, Cesar. Informe del ingeniero sobre la ruta Perené-Ucayali Lima, Imprenta del Estado, 1906, p. 57.

(3) HASSEL, J. M. Von. Las Tribus salvajes de la region amazônica del Perú. Boletin Sociedad Geográfica de Lima. Lima (Año XV, trim I, T. XVII): 31-32, 1905. EBERHARDT, Charles. Indians of Peru. Smithsonian miscelaneous collection (Vol. 52): 184. NORDENSKJOLD, O tto. Explorations chfz les Indies Campas dans le pérou. Meddelande fran Geografiska Formeningen i Goteborg (III): p. 6. 1924.

(4) GRUBB, Kenneth. The Iowland Indians of Amazonia. London, Word Dominion Press, 1927, p. 86. FAST, Pedro. Distribuicion geografica de 30 naciones aborígenes em la Amazonia Peruana. Lima, Ministério de Educacion Pública, 1961, p. 4.

(5) ROWE, John. The distribution of Indians and Indians languages in Peru. Geographical Review, New York (XXXXVII, No. 2):213, 1947.

(6) VARESE, Stefano. La Sal de los Cerros. Lima, Retablo de Papel, 1973, p. 44.

(7) BRINTON, Daniel 6. A raza Americana. Buenos Ayres, Ed. Nova, 1946, p. 224.

(8) RIVET, Paul y TASTEVIN, C. Les langues du juruá et de régions limitrophes. I. Le groupe arawak preandin. In: Antropological Papers, No. 8, V. 73, semdata, pp. 857-859.

(9) LOUKOTKA, Chestmir. Classification de las lenguas sudamericanas. Praha, Edic. Lingüística Sudamericana, No. 1, 1935. P. 21.

(10) MASON,Alden J. The Languages of Sowth American Indians. HSAI, v. 6, P. 213.

(11) STEWARD, Julian e FARON, Louis. Native People of Sonth America. New york, McGraw Hill Book Company, 1959, p. 22.

(12) SHELL, Olive A . Grupos Indiomáticos de la selva Peruana. Lima. Instituto de Filosofia de la Faculdad de Letras de la Universidad Mayor de San Marcos, 1958, pp. 4-7.

(13) Utilizam também o termo “noshaninka”, minha gente, minha família.

(14) Stefano Varese reforça a hipóteses da origem “pano” do termo Campa. Porém outras hipóteses podem ser aduzidas, como por exemplo, a origem tupi-guarani do termo. A língua tupi-guarani tornou-se um idioma de grande difusão na Amazônia e América do Sul durante o período colonial. VARESE, S. op. cit. ,p. 143.

(15) As evidências de que o termo “Campa” está historicamente carregado de conotações depreciativas são facilmente detectáveis. Até os dias atuais esta conotação é mantida tanto pelos etnólogos como pelos historiadores. Será que conseguiram neutralizar as conseqüências de uma denominação excusa ou apenas reproduzem ingenuamente as sequelas da ideologia ocidental?

(16) Betty Meggers, revê a tese do determinismo ambiental ao analizar os procedimentos da agricultura indígena nas várzeas e nas terras firmes da Amazônia. Conclui pela relevância dos métodos indígenas de cultivo, como resposta ecologicamente adequada ao meio ajmbiente (ver neste sentido MEGGERS, Betty. Amazônia: a ilusão de um paraíso. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, p. ). Já Roberto Carneiro, ao contrário, vê na rotatividade dos roçados outras razões de ordem cultural, não que apenas o exaurimento dos solos (CARNEIRO, Roberto. ”Slash-and-burn agriculture... Nen and Culture., University of Pennsylania Press, 1960. Pp. 230-234.)

(17) Apesar do esgotamento dos solos representar razão importante para mobilidade habitacional e, consequentemente, de roçado, há outras razões sociais e religiosas que provocam mobilidade. Entre as causas sociais: a troca de residência do homem após seu casamento é uma constante na cultura Asheninka. O nubente passa a residir próximo aos pais da esposa (residência uxorilocal). Esta mudança, entretanto, não possui caráter definitivo. A principal causa religiosa para mudança de local de habitação e cultivo é o sepultamento de um adulto da família no local.

(18) O roçado de uma família Asheninka pode contar com mais de 40 espécies de plantas.

(19) Nem todos os Asheninka tem o mesmo acesso à caça e pesca. As comunidades que residem em regiões interfluviais, nos altiplanos próximos à Cordilheira e no Gran Pajonal possuem um meio ambiente pobre em vida animal, já que estes encontram-se mais próximos aos rios. Estas comunidades, ás vezes, organizam incursões aos rios onde se provêm de caça e pesca.

(20) Entre os Asheninka, a proibição do incesto constitui um dado eminentemente cultural, nada tendo de biológico.

(21) A família que concede apenas filhos varões não está destinada ao fracasso porque a norma de uxorilocalidade é temporária e o marido também pode buscar novo enlace, com uma mulher que lhe proporcione filhas.

(22) Nas aldeias do Alto Rio Envira encontrou-se casos de poliginia na forma de sororato não vinculados ao prestígio da pessoa no grupo.

(23) Os procedimentos do parto compreendem: o assoalhado da casa é totalmente limpo e arejado, uma esteira ou roupa lavada é estendida e sobre a qual a gestante posiciona-se de cócoras segurando-se uma barra de madeira no sentido de facilitar as contrações. Durante o tempo necessário ao parto, a mulher que dá a luz, é auxiliada por uma parteira, pela mãe ou pela sogra.

(24) As mães amamentam seus filhos até os 2 anos, ou até o nascimento de um novo filho. Suplementam a alimentação infantil com alimentos mastigados e líquidos (mingaus) a partir de dois meses do nascimento. A desmama é induzida quando a criança atinge cerca de dois anos, colocando-se suco ou melado de tabaco no mamilo. Os pais ou tutores criam, educam e castigam a criança, se necessário.

(25) Na aldeia Cocassul no Alto Rio Envira observou-se uma conduta diferencial em adolescente do sexo masculino, relacionada ao vestuário. Esse aspecto necessita novas observações.

(26) A instituição da troca representa um fato cultural significativo na sociedade Asheninka. O intercâmbio de dons e bens da natureza mantidos pela tradição não tem apenas significado econômico e social, representa, ainda,comunhão entre pessoas e grupos, num sentido, evidentemente espiritual.

(27) A Banistereopsis caapi é conhecido na Amazônia Ocidental com a denominação vulgar de cipó. A bebida alucinógena produzida desta trepadeira também recebe o nome de cipó.

(28) As providências a serem tomadas pelo shiripiari neste casos são: se a doença for causada por um espírito perdido, o shiripiari envia sua própria alma à sua procura; se for por uma feitiçaria humana, separa o culpado que é obrigada a desenterrar os materiais enfeitiçados que enterrou ao redor da casa ( se o paciente morre, a bruxa é executada ou vendida aos Brancos); se forem bruxas não humanas (formigas, abelhas, ervas, bebidas), são feitos esforços conjuntos para destruí-los. Se for por um demônio passante); se for por confronto direto com um demônio de natureza imaginária, não há nada a fazer, espera-se a morte do paciente.

Fonte: MINISTÉRIO DO INTERIOR - FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO-FUNAI