terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Arte da Capoeira - Camille Ardono

O que é a Capoeira


Os negros usavam a Capoeira
para defender sua liberdade.

Mestre Pastinha

Dança negra. Com muitos rituais. Brincadeira de movimentos com malícia. Na dança negra de pés no chão a agilidade da esquiva e a esperteza da fuga. E de repente, ante os olhos surpresos do adversário, o gesto rápido. O ataque fulminante. Então, prostrado, o inimigo se dá conta de que foi vítima da mandinga. Isto, se ainda tiver vida...



“No tempo em que o negro chegava

fechado em gaiola

Nasceu no Brasil

Quilombo e Quilombola

E todo dia

Negro fugia

juntando a curriola

De estalo de açoite, de ponta de faca

e zunido de bala

negro voltava p’ra argola

No meio da senzala

E ao som do tambor primitivo

berimbau, maraca e viola

Negro gritava: - abre ala!

Vai ter jogo de Angola”

(Mauro Duarte/Paulo Cesar Pinheiro, Jogo de Angola)

Capoeira: a arte negra

A dança - enquanto forma de expressão corporal - possui uma linguagem onde cada gesto significa e representa idéias e sentimentos. Emoções. Sensações.

O jogo da Capoeira é a síntese da dança. A sua essência, disfarçada em brinquedo. Vadiação. Distração de quem busca extravasar cada função interior nos gestos exteriores.

É na dança que se manifesta a tradição milenar da cultura negra de reverenciar as origens. Isto ocorre cada vez que se repetem gestos ancestrais. Renovados. Conduzindo ao reconhecimento da necessidade de manter viva a ligação com os antepassados, que praticaram os mesmos atos. Nisto reside a grandeza da dança negra. Ritual. E no respeito aos que geraram a vida, a beleza maior.

O balanço dos braços, o arremesso dos pés, o meneio do tronco e dos quadris, a harmonia de todo o corpo em gestos que não perdem a continuidade. Como se fora um ininterrupto perambular pelo círculo, em estreita ligação com o solo.

A Capoeira consiste numa dança onde o emprego dos movimentos arriscados - dado à circunstância de camuflar possível contenda - envolve os participantes e contagia quem assiste. Como não se deixar empolgar pela combinação de bela plástica humana nos movimentos despojados, com o evidente fascínio da dança e a alegria de uma festa?

É ainda muito mais a dança da Capoeira. O contato com o chão, intenso como o vínculo dos filhos com a mãe. Que envolve e protege, criando a vida e assistindo a todos, silenciosa. Acolhendo a dança, que é também em seu louvor.

A postura reverente dos capoeiras uns com os outros, para com o jogo, a terra, o berimbau, o atabaque, se explica no propósito maior da dança: unir. Ligar estreitamente, como as mãos que se apertam ao final de cada jogo, na saudação dos camarás.

Luta negra. Com a força dos ritos. Preservando mitos. Participando ativamente da resistência comum às variadas formas de dominação: cultural, física... Bastião erguido em defesa da nossa identidade coletiva, a Capoeira não foi somente um fermento revolucionário - ela é realmente um instrumento de transformações, apesar do grande cerco que sofreu e sofre ainda hoje. Dos que tentam levá-la à padronização esportiva ou reduzi-la a mera forma de defesa pessoal, sugerindo sua definição como arte marcial.



“Dança guerreira

Corpo do negro é de mola

Na Capoeira

Negro embola e desembola

E a dança que era uma festa pro povo da terra

Virou a principal defesa do negro na guerra

Pelo que se chamou libertação

E por toda força, coragem e rebeldia

Louvado será todo dia

Que esse povo cantar e lembrar o jogo

de Angola

Da escravidão no Brasil”



(Mauro Duarte/Paulo Cesar Pinheiro)



A luta da Capoeira não acontece com objetivo de competição entre os camaradas. Quando o jogo degenera em luta explícita, já não ocorre a Capoeira. O objetivo da luta é tornar o capoeira senhor de si mesmo e integrado ao grupo. É no recesso da comunidade que ocorre o aprendizado e a prática do jogo, de forma coletiva e fraterna. Se às vezes isto não acontece, não se pode falar em Capoeira na plenitude; quando muito em adestramento nos movimentos básicos, de forma desvinculada dos objetivos e fundamentos da arte.

O ponto alto da luta sempre foi resistir. Contra o preconceito, a discriminação disfarçada. Contra oportunistas e aproveitadores astuciosos que se apropriam dos valores da nossa cultura e tentam adulterá-la, fazendo isto de tal forma que ao negro é mesmo vedado o acesso à manifestação. Assim, o que era coisa de negro pode acabar se tornando de alguns indivíduos. Que detêm o poder, confiscam o que lhes interessa e depois de adaptar às suas conveniências, comercializam como bem entendem.

A luta da Capoeira implica também na reação a este estado de coisas. Não é legítimo transformar a arte negra em esporte ou folclore, conforme os conceitos de algumas pessoas. Não podemos admitir a inovação das cores e graduações tiradas de qualquer coisa que não a própria arte. Ou a cópia de conceitos de hierarquia segundo manuais militares e culturas exóticas. Menos legítimo ainda é o estabelecimento de regras para o jogo da Capoeira aplicando conceitos extraídos de lutas alienígenas - geralmente chegadas até nós deturpadas pelos objetivos de exploração das academias e descaracterizadas pela indústria do cinema hollywoodiano. Contra tudo isso a Capoeira é luta. Mais que nunca reafirmando os valores culturais do povo que a criou.



“Capoeira vai lutar

já cantou e já dançou

não pode mais esperar...

Não há mais o que falar

cada um dá o que tem

capoeira vai lutar...

Vem de longe, não tem pressa

mas tem hora p’ra chegar

já deixou de lado sonhos

dança, canto e berimbau

abram alas, batam palmas

poeira vai levantar

quem sabe da vida espera

dia certo p’ra chegar

capoeira não tem pressa

mas na hora vai lutar

por você... Por você...”



(Geraldo Vandré, Hora de Lutar)



Luta negra. Presente no cotidiano dos morros, terreiros, favelas, praças e ruas. Companheira do trabalho e diversão das feiras e festas, acompanhando o negro em qualquer ambiente social.



Itinerários



“Fomos ao rio de Meca,

Pelejamos e roubamos

E muito risco passamos

e vela.

E árvore seca.

(...)

A renda que apanhais

O melhor que vós podeis,

Nas igrejas não gastais

Aos pobres pouco dais.

E não sei o que lhe fazeis.”





Gil Vicente,

Exortação da Guerra





Portugal, África e Brasil:

os relatos históricos





Para a melhor compreensão do período histórico onde se situa o descobrimento do Brasil e a conseqüente formação da nossa cultura, é indispensável reportarmo-nos aos relatos e narrativas deixadas por escritores portugueses da época.

A literatura lusa - constituída ainda no período medieval - alcançou o apogeu com Gil Vicente, Camões e Fernão Mendes Pinto, justamente na fase em que é completada a expansão do povo português no mundo. O Brasil, portanto, é contemporâneo dessa expansão, nela se inserindo tanto o fato primordial da sua descoberta e colonização, quanto o dos belos trabalhos produzidos pela talentosa literatura portuguesa terem por motivo inspirador os fatos decorrentes da sua descoberta - além da conquista na África.

A língua portuguesa, instrumento dessa literatura e que com ela se aprimorou, deriva do latim popular, que teria chegado à Península Ibérica no século III antes de Cristo.

Na história literária - assim como na história geral - encontramos divisões em épocas ou períodos, compreendendo fases de tempo em evolução cronológica e englobando conjuntos de obras literárias com características comuns. Nesse trabalho, os historiadores da literatura consideram se as obras obedecem aproximadamente à mesma ordem de valores estáticos, ao reuni-las com vistas à exposição histórica.

Segundo o Prof. Fidelino Figueiredo, dividindo a literatura portuguesa em eras, temos as seguintes: medieval (do século XII até 1502), clássica (1502 a 1825) e romântica (de 1825 aos dias atuais).

O período medieval da literatura portuguesa se caracteriza pela poesia, reunida em repositários coletivos (os Cancioneiros), que são os seguintes: o Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana, o Cancioneiro Português Colocci-Brancuti e o Cancioneiro Português da Ajuda.

Esta fase medieval é geralmente considerada como finda no começo do século XVI - quando é representada a primeira obra teatral de Gil Vicente, o Monólogo do Vaqueiro, em 1502. Começa então o período clássico (já contemporâneo do Brasil), onde a literatura produz obras importantes para a compreensão da gente que realizaria a colonização, evidenciando o seu caráter e a perspectiva em que encaravam a nossa terra.

Na fase clássica encontramos os trabalhos literários que mais diretamente se relacionam à nossa história, abordando as conquistas na África, os costumes de Portugal, as viagens de descobrimento na América e análises e observações importantes acerca da sociedade da época.

Salientamos a importância da consulta às obras de Gil Vicente (1460-1536), fundador do teatro português, autor das farsas Juiz da Beira, Clérigo da Beira, Inês Pereira e Quem tem Farelos; dos autos da Barca da Glória, da Barca do Inferno e da Barca do Purgatório. Gil Vicente distinguiu-se ainda como poeta e cronista de costumes ao retratar a vida portuguesa do seu tempo.

Outro vulto de destaque para a compreensão do que era a gente portuguesa é Luís de Camões (1524-1580), não somente o grande poeta lírico do período clássico mas o mais importante poeta da língua portuguesa, como épico em Os Lusíadas, ou lírico, com as Rimas. Dramaturgo, distinguiu-se com as comédias El-Rei Seleuco, Anfitriões e Filodemo.

Muitos foram os poetas e romancistas deste período, cujo talento não se ofusca ante o infausto brilho das conquistas na África e no Brasil. Destacam-se: Bernardim Ribeiro (1475-1553), poeta e romancista, autor famoso de Menina e Moça; Francisco de Sá Miranda (1495-1558), poeta e teatrólogo: Antônio Ferreira (1528-1559), também poeta e teatrólogo; João de Barros (1496-1570), autor das Décadas da Ásia, prosador e historiador; Damião de Góis (1502-1574), autor da Crônica do Príncipe D. João; Fernão Mendes Pinto (1509-1580) viajante e prosador, autor do relato Peregrinação, de suas viagens ao Oriente; e Diogo do Couto (1542-1616), continuador das Décadas da Ásia, companheiro de Camões em Moçambique, autor do Soldado Prático.

À época, destacaram-se como historiadores mais especificamente do descobrimento e início da colonização do Brasil: Pero de Magalhães Gandavo ( ? - 1576), autor da História da Província de Santa Cruz e do Tratado da Terra do Brasil; Gabriel Soares de Sousa (1540-1592), autor do Tratado Descritivo do Brasil; e Frei Luís de Sousa (1555-1632), autor da Vida de D. Frei Bartolomeu dos Mártires.

Dentre os escritores brasileiros, um dos primeiros historiadores foi o Frei Vicente do Salvador (1564-1639), nascido na Bahia, o primeiro a fazer uso da prosa literária em sua História do Brasil, que somente seria publicada em 1889. Segundo o crítico José Veríssimo, ao fazermos a lista dos nossos clássicos, com certeza Frei Vicente do Salvador seria o primeiro.

Estes são alguns dos principais autores e trabalhos que nos permitem uma introdução à história do Brasil e seus problemas, com vistas a formarmos a nossa própria crítica do processo de surgimento da civilização brasileira.

Aos amantes da leitura, fica a sugestão para pesquisa e estudo.



As origens

São dois pra bater no negro

de pau, chicote e facão

p’ra se safar tem o negro

só dois pés e duas mãos

é a mão pelo pé

é o pé pela mão

bate na cara

derruba no chão



Sérgio Ricardo, Brincadeira de Angola



África: onde tudo começou...



As origens do jogo da Capoeira se encontram no princípio da nação brasileira, e seu desenvolvimento acompanhou o relacionamento de negros, brancos e índios no continente americano.

A terra descoberta aos olhos do colonizador seria o berço de uma nova cultura - fruto das peculiaridades do ambiente e da forma em que se processavam as relações entre os conquistadores europeus; os ameríndios - primeiros senhores do continente; e os africanos - trazidos à força para realizar todo o trabalho.

No entender do descobridor o novo mundo deveria ser explorado em todos os aspectos, como fonte supridora da necessidade de riquezas fáceis sentida na Europa. E nada mais natural que o emprego do trabalho escravo. De nativos e africanos. Afinal, a nobreza que governava o mundo ocidental gozava do privilégio de ser ociosa. Para as agruras de todos os serviços, somente seres inferiores, aí incluídos todos que não tivessem a pele branca.

A presença dos portugueses na África tem registro desde meados de 1430. Lá, o europeu incentivava astuciosamente as diferenças tribais, fomentando rivalidades entre grupos. Depois, adquiria os prisioneiros feitos por ocasião dos conflitos, negociando com exploradores de toda espécie a aquisição de seres humanos para o trabalho forçado.

A chegada dos portugueses significava destruição completa para os nativos da África - o provável berço da humanidade, segundo recentes estudos. Os africanos apresados eram obrigados a trabalhar nas plantações canavieiras das ilhas do Atlântico. À época da descoberta do Brasil, Portugal já vivia da exploração de colônias na África, Ásia e no Atlântico. Seu caráter já amolecera na aventura da escravidão. Luís de Camões, que via muito bem com seu único olho, se lamentava de ver sua pátria mergulhada “no gosto da cobiça e na rudeza/de uma austera, apagada e vil tristeza”.

Em 1441, Antão Gonçalves levou a D. Henrique dez negros que trocara por dez mouros colhidos na costa da África. Segundo Azorara, que além de chefe de expedições portuguesas que praticaram massacres nas terras africanas revelou pendores literários, manifestos em crônicas aduladoras, D. Henrique mostrou-se “ledo” ao ver os africanos. Não pelo número, acentuou o cronista, “mas pella sperança dos outros que podya aver”.

No ano de 1444 fundou-se a Companhia de Lagos, cuja finalidade era intensificar o tráfico de escravos. No fim do século, Portugal recebia em média 12.000 escravos por ano, provenientes a princípio de Guiné, São Tomé, Príncipe e mais tarde, de Angola, Moçambique e demais regiões africanas. A escravidão tornara-se a mais próspera indústria do país. E o empreendimento desumano cresceu de tal forma que cerca de um século após iniciado, o flamengo Nicolaus Cleynaerts, humanista que se encontrava na corte portuguesa como preceptor dos filhos de D. João III, fez as seguintes observações a respeito do reino ibérico:

“Tudo ali pulula de escravos, todos os trabalhos são executados por negros e cativos, dos quais Portugal está tão cheio que, segundo creio, existem em Lisboa mais escravos e escravas dessa espécie do que portugueses livres.”

Foi aí que entramos na história. Os interesses econômicos e ideológicos dos portugueses - “a dilatação da Fé e do Império” - segundo Camões -, não estavam voltados exclusivamente para o Oriente fértil das ricas especiarias, sedas, objetos de valor como tapetes, perfumes, produtos medicinais. Vasco da Gama retornara da Índia com um carregamento de pimenta que permitiu lucros de até 6.000%, quando vendido na Europa. Mas no seu Diário de Viagem ele contava ter percebido sinais seguros da existência de terras a oeste de sua rota. A Espanha já tinha descoberto novos mundos na sua tentativa de chegar ao oriente navegando sempre para ocidente. E Portugal já tinha assegurado para si uma parte desse território, com a Capitulação da Partição do Mar Oceano, mais conhecida como Tratado de Tordesilhas, assinado entre as duas potências de então, em 1494.

Não é absurdo supor que Cabral recebera orientação no sentido de afastar-se ao máximo da costa africana, podendo confirmar a existência dessas terras e delas tomar posse. Essa seria outra tarefa de sua expedição. O descobrimento do Brasil é apenas um episódio da expansão marítima européia, no momento da transição do feudalismo para o capitalismo. As práticas mercantilistas e a predominância dos interesses econômicos sobre os aspectos religiosos e ideológicos se refletem até no nome definitivo que a terra ganha, provocando protestos do cronista João de Barros: “Por artes diabólicas se mudava o nome de Santa Cruz, tão pio e devoto, para o de um pau de tingir panos”.

O início da colonização das terras brasileiras se deu sob o reinado de D. João III, conhecido como O Colonizador em razão das expedições que organizou. Em 1530 uma nova esquadra veio para o Brasil sob o comando de Martim Afonso de Sousa, com instruções similares àquelas emitidas aos navegadores que o antecederam: as suas cinco embarcações explorariam o litoral compreendido entre o Maranhão e o Rio da Prata, capturando os contrabandistas encontrados ao longo da Costa do Pau-Brasil. Entretanto, eram mais amplos os objetivos específicos do Capitão: fundamentar a efetiva invasão da terra, implantando núcleos de povoamento dos portugueses. Pero Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso, relata como isso aconteceu, em seu ‘Diário’:

“A todos nos pareceu tão bem esta terra que o capitão determinou de a povoar, e deu a todos os homens terras para fazerem fazendas: e fez uma vila na ilha de São Vicente e outra nove léguas a dentro pelo sertão, à borda de um rio que se chama Piratininga; e repartiu a gente nestas duas vilas e fez nelas oficinas, e fez tudo em boa obra de justiça.”

Em meados de 1532 foi introduzido no Brasil o cultivo da cana-de-açúcar e no seu desenvolvimento os colonos fixaram-se à terra, adquirindo glebas e se instalando com plantações e engenhos. Surgiram as duas primeiras vilas brasileiras no mesmo ano: São Vicente e Piratininga. Desobedecendo às ordens reais as povoações não se localizavam na chamada ‘Costa do Pau-Brasil’: revelava-se a prioridade dos portugueses - que era a busca dos metais preciosos. A escolha do local para a fundação das vilas facilitava a procura das minas do Peru e do Paraguai, à época em conquista - a ferro e fogo! - pelos espanhóis chefiados por Francisco Pizarro, que destruiriam o Império Inca.

A sede da riqueza dos metais levou os lusitanos a explorarem o estuário platino, organizando entradas com destino ao interior, saindo de Cananéia e Guanabara. A entrada que partiu de Cananéia foi dizimada pelas populações indígenas da região do atual Paraná, mostrando que a dominação das novas terras não seria uma tarefa fácil.

Quem era a gente portuguesa que se propunha a empreender uma tarefa que não se apresentava como das mais fáceis? Àquela altura, segundo Fernando Palha, Portugal importava tudo, desde o pão que comia até a lã que fiava. Nenhum português queria fazer nada.

“A prática bissecular da pilhagem no seu próprio país (os impostos escorchantes), a aventura oceânica e o tráfico negreiro, tudo isso minou a resistência moral do povo, dando-lhe até repugnância pelo trabalho.”

Como o Brasil só era habitado por silvícolas, ninguém queria vir para cá - além dos que seriam proprietários das terras. Francisco de Sá Miranda, grande poeta português, mas inegavelmente dominado pela ambição, refere-se ao fascínio das especiarias da Ásia e da África - que o Brasil não tinha - com estas palavras: “Ao cheiro desta canela/o reino nos despovoa.”

Antônio Ferreira, poeta renascentista, retrata bem o espírito da época em Portugal, a ambição do reino pelos metais preciosos: “Tudo obedece a este só Tirano/Esta é a idade que chamaram de ouro/Tanto valho, Senhor, quanto entesouro.”

Sobre o caráter da nobreza e do povo português ao tempo da descoberta e exploração, fala melhor o holandês Cleynaerts. Diz ele: “Se há povo algum dado à preguiça, sem ser o português, então não sei eu onde ele exista (...)”

E prossegue Cleynaerts ainda mais direto em suas considerações: “Em Portugal somos todos nobres, e tem-se como uma grande desonra exercer uma profissão qualquer.”

Diogo do Couto também se queixou: “(É) muito antiga esta miséria portuguesa de não saber dar lugar às virtudes nem engrandecer honrosos pensamentos.”

Quanto à moral da nobreza - a começar pela família real, que tinha origem bastarda - era a pior possível. Frei Luís de Sousa disse que nela “o vício era posto a cavalo”.

Revela Fernão Lopes que D. Pedro I (de Portugal) confessara um dia a Nuno Freire que alguém lhe dissera ter ele um filho de nome João que subiria muito alto, mas ele próprio não sabia qual fosse, pois tinha vários filhos com o mesmo nome, inclusive um deles com a bela Inês de Castro...

Apesar da ausência de ouro e prata, São Vicente adquire contornos definitivos: a primeira unidade produtora de açúcar - o Engenho do Senhor Governador - foi instalada em 1533. Passado um ano chegam as primeiras cabeças de gado provenientes de Cabo Verde.

Logo ficou evidente a insuficiência dos núcleos isolados de povoamento para assegurar o domínio português. A maior extensão do litoral brasileiro continuava à mercê de incursões estrangeiras.

É hora de D. João III mais uma vez justificar o cognome de Colonizador: seguindo conselhos de um descendente de colonos das ilhas do Atlântico, Cristóvão Jacques, do reitor da Universidade de Bordéus e de outros destaques da corte, resolve implementar a colonização. A tantos bons conselhos se acrescentou a cobiça, objetivamente: manter o monopólio oriental era muito dispendioso e a notícia da descoberta de ouro e prata na América Espanhola valorizou ainda mais o novo mundo.

Nenhum comentário: