sábado, 13 de setembro de 2014

Identificação, Ásabiyah e Cultura: Ibn Khaldun e Freud...

Diz-se que, em menor ou maior grau, as culturas sempre trocaram entre si – e se fizeram desta e nesta troca –, nos parece indubitável que o caráter da troca no mundo contemporâneo, por efeito e eficiência dos novos meios eletrônicos de comunicação, seja sem precedentes. Em um momento no qual diversos mundos culturais são, cada vez mais, forçados a confrontar-se com a presença e fala dos demais é oportuno realizar trabalhos em que se objetive encontrar o sentido e o alcance das diferenças e semelhanças.

Sem dedicar o presente estudo a este fenômeno geralmente chamado de “globalização”, esperamos, à guisa de introdução, situar com estas palavras o nosso trabalho neste movimento. É daí que advem sua utilidade, se houver alguma.

Aproximar de alguma forma dois pensadores tão distantes, como Ibn Khaldun e Freud, não é propriamente o objetivo central deste estudo senão encontrar um bergantim[1] qualquer que nos permita navegar entre duas formas distintas de interpretar o mesmo fenômeno, sem reduzir uma à outra, ao mesmo tempo em que deixamos o desdobramento e o valor heurístico disto para cada tradição à imaginação do leitor.

Se Freud pensava o estar no mundo e o fazer-se humano dentro de uma dimensão que não se restringe ao natural ou biológico, mas parte deste e vai além, em um movimento de entrada na cultura, então, pensar um sujeito que respira outro padrão civilizatório – padrões familiar, econômico, religioso e etc - que não o ocidental nos força a abrir mão de um etnocentrismo qualquer e, sem cair no relativismo absoluto, resgatar a dimensão humana da diferença. Nos obriga, inclusive, a levantar a hipótese – que não será trabalhada nesta monografia – de que a formação psíquica em outras condições culturais se dê que não como estudamos no Ocidente. 

Portanto, o oportunismo e a esperança deste trabalho é somar-se – sob o viés da Psicanálise - ao montante de elocubrações sobre o momento curioso em que vivemos.

Como em todo campo fecundo de saber a Psicanálise é ampla e ramificada, a tarefa de convergência conceitual entre as várias correntes pode facilmente tornar-se tão improdutiva quanto desnecessária. Nos parece desejável respeitar os diversos discursos para que se dê margem às sutilezas da apreensão de cada um sem reduzi-lo aos demais.

Como os movimentos religiosos, as diversas correntes psicanalíticas por vezes proclamam a posse de uma interpretação legítima daquele texto em torno do qual o grupo supostamente encontraria sua fundação. A luta em nome da causa verdadeira nos parece humana o suficiente ao ponto de ser caricatural e triste, pois em detrimento das demais interpretações, meras heresias que distorceriam o significado original da intuição do mestre, esvaziam a própria obra fundadora. Não daremos ouvidos aos aiatolás e mulás da Psicanálise, nem pretenderemos que a leitura adotada seja a verdade escondida nos textos. 

No desenvolvimento, o primeiro capítulo esboça a vida de Ibn Khaldun, seu contexto histórico e o conceito de ‘asabiyah, que será central neste trabalho. Pretendemos mostrar seu pensamento vinculado à época e biografia do autor. Já no segundo capítulo demarcamos pontos de encontro e desencontro entre as tradições ocidental e islâmica. O terceiro traz o fundamental da leitura freudiana da cultura e fenômenos de massa demarcando suas convergências e várias divergências em relação ao conceito de ‘asabiyah. Em seguida, se o leitor manteve sua paciência, encontrará algumas considerações finais. Que seja, pois como diz o velho ditado popular árabe: “besouro em casa é sultão”.

Capítulo I

Se a função de um conceito é apreender uma face de um fenômeno em estudo e, através de junções com outros conceitos pertinentes, deixar aparecer uma certa inteligibilidade deste fenômeno que consolide uma teoria, podemos sugerir que o conceito de ‘asabiyah na obra de Ibn Khaldun - de acordo com Simon (2002) – fala de uma perplexidade frente a um fenômeno específico que o filósofo árabe soube se deparar e elaborar. Assim, menos para definir a delineação ôntica do conceito do que resgatar sua dimensão provocativa, tentamos esboçar como ele se inscreve nas vivências, mesmo que gerais, do autor.

Abu Zaid ‘Abd Ar-rahman ibn Muhammed ibn Khaldun Wali Ad-din At-tunisi Al-hadrami Al-ishbili Al-maliki, mais conhecido como simplesmente Ibn Khaldun, nasceu no dia 1° do mês islâmico de ramadão de 732, que corresponde a 05 de maio de 1332 no calendário gregoriano, em Tunis, no Norte da África. Embora sua família tenha emigrado de Sevilha quando da conquista cristã, chegando no Norte da África por volta de 1235, era originário de Hadramaut[2], logo, sua origem mais provável era árabe (como ele mesmo atestava).

Aos 17 anos perde seus pais por conta de uma peste que assolou Tunis e, aos 20 anos, assume uma posição na corte local como escrivão do Sultão Hafsida Ishaq. Dá início a uma longa e turbulenta carreira que, no entanto, lhe outorgaria notoriedade.

Em 1350, quando os Hafsidas reconquistaram Tunis, muitos de seus professores retornaram ao Marrocos. É imbuído do desejo dar continuidade aos seus estudos que abandona seu cargo em 1354, partindo rumo à corte marinida em Fez. Lá, assume a posição de muwaqi com certa indignação, pois nenhum de seus antepassados trabalhara neste cargo.

Manteve contato com o soberano de de Bougie, um Hafside, a despeito dos conflitos entre a corte para qual trabalha e os Hafsidas. Pagou caro, aprisionado em 1357 teve que esperar até o ano seguinte para vir a ser libertado em decorrência da morte do sultão que ordenara seu calabouço. Este fôra assassinado e, na luta pela sucessão, Ibn Khaldun apoia aquele que realmente se tornaria o próximo Sultão de Fez: Abu Salim.

Investido de poder, Abu Salim agracia Ibn Khaldun oferecendo-lhe o cargo de secretário. Mas, novamente deixará sua posição devido a intrigas na corte, partindo desta vez para Granada. Destacar-se-á nesta cidade, sendo que, atraído pela oferta da prestigiosa função de hajib, estabeler-se-á em Bougie em 1365.

O curso dos eventos, entretanto, não foi favorável para Ibn Khaldun e os ventos da instabilidade política, que sopravam fortemente àquela época nesta região, se fizeram marcantes. O soberano é destituído por seu primo, e como este não via em Ibn Khaldun um aliado, fez o filósofo árabe decidir partir para Tlemcen em 1368.

Os próximos anos não serão mais calmos e Ibn Khaldun passará por um grande número de cortes e tribos. Contudo, em 1375 ele decide se isolar para dedicar-se por quatro anos à elaboração de trabalhos científicos. É nesta época que escreve sua obra mais importante – muqaddimah.

Decidido a cumprir sua obrigação religiosa enquanto muçulmano, peregrina para Meca. Sua rota passa pelo Egito e, impedido de continuar imediatamente a viagem, visita o Cairo. Lá, adia sua peregrinação e se estabelece como professor. Em pouco tempo recebe uma posição elevada. Perde neste período sua família em um naufrágio, justamente quando vinham ao Egito juntar-se a ele. Consternado, abandona o posto em 1385 e se recolhe na fé. Em 1387 conclui sua peregrinação inacabada a Meca e retorna ao Cairo, reassumindo o magistério. Mantém, então, uma vida pública sem grandes agitações para a época.

Por volta de 1400 os mongóis, sob a liderança de Timur, invadem a Síria. Ibn Khaldun parte junto ao Sultão para Damasco. Este ver-se-á forçado a retornar ao Cairo mas aquele permanecerá em sua missão. Negociou com Timur, que lhe encomenda um texto descritivo sobre o Norte da África. Após este episódio retorna ao Cairo e assume, ainda, o cargo de qadi(jurisconsulto) mais uma vez. Ao todo terá exercido este cargo seis vezes durante toda sua vida quando morre em 16 de março de 1406, ou 25 de Ramadão de 808. 

Com uma vida pública de atividades nas cortes das turbulentas da África do Norte e Andalusia, Ibn Khaldun participou dos altos e baixos de vários regimes aristocráticos. Se por um lado sua vida pública reflete a instabilidade da região, por outro, é no registro de uma teorização de sua experiência pessoal que ele fala de questões que alcançam um além do imediatismo dos acontecimentos (Simon, 2002)"... Para continuar a leitura, clique aqui...

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

Farmácia Moral: O afeto com 5% de desconto no boleto...

... "Cegueira moral: A perda da sensibilidade na modernidade líquida... O mal não está restrito às guerras ou às circunstâncias nas quais pessoas atuam sob condições de coerção extrema. Hoje ele se revela com frequência na insensibilidade diária diante do sofrimento do outro, na incapacidade ou recusa de compreendê-lo e no desejo de controlar a privacidade alheia. A maldade e a miopia ética se ocultam naquilo que consideramos comum e banal na vida cotidiana.

Esse livro é composto por cinco diálogos de Zygmunt Bauman com Leonidas Donskis, filósofo, cientista político e historiador das ideias, professor de ciência política na Universidade de Vytautas Magnus, na Lituânia, e membro do Parlamento Europeu": Aqui...

... " Madrugada de domingo para segunda. Melhor hora para escrever sobre o que nos aflige. Se um dia você quiser falar sobre autoajuda ou vender algum produto, escolha outro horário para pegar uma caneta ou o seu tablet.

Minha idade está relacionada à geração Y (why em inglês – questionadora, chata) pelas pesquisas publicitárias, informação importante para falar sobre “Cegueira Moral – A Perda da Sensibilidade na Modernidade Líquida”, livro recém-lançado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman em troca de correspondências com o filósofo e cientista político lituano Leonidas Donskis, publicado no Brasil pela Zahar.

Bauman é conhecido pelo termo “líquido” em seus títulos e ideias, onde o tratamento de questões como o amor, a vigilância, o medo, a política, a segurança e agora a moral aparecem na nossa era tecnocrata e afetam absolutamente todas as gerações, cada qual de uma forma. Com quase 90 anos, o sociólogo tem escrito mais do que a média de leitura dos brasileiros. Só neste ano é o segundo lançamento do autor. O primeiro foi “Vigilância Líquida”, junto com o filósofo David Lynn, mostrando o lado progressista e caótico da tecnologia. Você tanto pode ganhar tempo através dela como ser pego numa traição caso um drone pouse na janela do seu quarto aparentemente seguro no 21º andar. Aceitamos os contratos e ficamos à mercê do “big data”.

Leonidas Donskis, pela sua formação e por ser membro do Parlamento Europeu, leva sua discussão neste último lançamento para o âmbito político-moral, relacionando a mudança (e separação) que o poder teve da política devido às transformações sociais que fizeram os indivíduos se afastarem de uma moral sólida e se aproximar de uma insensibilidade, onde as narrativas são criadas no mundo virtual. Para Donskis, de um lado o poder perambula em segurança pela esfera global e livre para escolher seus alvos; do outro está a política, “espremida e destituída de todo ou quase todo o seu poder, de seus músculos e dentes”. Há um “totalitarismo líquido (ou soft)”, como o padrão chinês de modernidade: sua forma de capitalismo sem democracia, ou seja, fique rico, mas permaneça longe da política.

O mal subjetivo, segundo Donskis, um dos motivos de nossa “cegueira moral”, não aparece na sociedade de forma evidente como antigamente (o totalitarismo é um dos exemplos). Hoje ele é “fraco e invisível”, tornando-se ambivalente em sua interpretação.

Sabemos que vivemos em uma sociedade pautada pelo que você tem, logo a lógica é totalmente ligada à sua conta bancária e aos produtos que você escolhe para te representar. Porém, Bauman leva a discussão para um novo tipo de consumo, o consumo dos “tranquilizantes morais”. Não precisamos mais nos preocupar com “peso na consciência” ou o sofrimento do outro por um ato subjetivamente inconsequente. Somos mercadorias e tratamos nossos pares como tal, viramos Don Juans e Giacomos Casanova, heróis da modernidade que usam o afeto como arma de suas rápidas relações. A melhor mulher, o melhor trabalho, a melhor viagem e o melhor celular sempre serão os próximos.

A grande diferença é que temos voz, microfones digitais que espalham informações, na maioria das vezes rasas, pelos aplicativos e redes amplamente disponíveis à massa. Um dos problemas, segundo Donskis, é que quando uma rede social chega a indivíduos que vivem em um regime tirânico, isso se torna um problema político a ser resolvido. A Primavera Árabe e as manifestações no Oriente Médio são casos explícitos da obsessão do poder que nossa época vive.

Um dos termos relacionado pelos autores para expressar essa perda de sensibilidade é o da adiaforização da conduta humana. Adiaphoron em grego significa algo sem importância. Foi utilizado pelos estoicos e mais tarde pelo reformador religioso Phillip Melanchthon (companheiro de Lutero) para designar as diferenças litúrgicas entre católicos e protestantes, ou seja, algo que não merecia atenção. Bauman usa o termo relacionando uma saída temporária da nossa zona de sensibilidade e tratando os outros como objetos, não como pessoas. Para ele o termo não significa “desimportante” e sim “indiferente”, como se vivêssemos em uma sociedade do tanto faz. Uma das causas seria a racionalidade instrumental da modernidade líquida e a ilusão que as coisas reais são somente aquelas que acontecem conosco, todo o resto é ficção ou invenção das revistas de grande circulação.

A questão do narcisismo não poderia ficar de lado. Ou nos tornamos vítimas ou celebridades nessa era obcecada pelo consumo, autoexposição e sensacionalismo. O “compro, logo existo” ou o “podemos, logo devemos” é comparado ao olhar estatístico que os seres humanos sofrem. Como visto em “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley, o fracasso em atingir a felicidade é visto como um sintoma de atraso. Não temos o soma do livro como remédio moral, mas temos Jack Daniel´s Honey, milhares de mulheres solitárias perdidas no inferno das noites livres, sorvetes importados, carros com bluetooth integrado no seu iphone, cinemas 4D e cruzeiros temáticos como farmácias curativas desses holofotes com as luzes amarelas que se apagam quase todos os dias.

Uma das expressões centrais e importantes para tratar dos nossos insensíveis contemporâneos é a palavra “precariado”, cunhada pelo professor e economista Guy Standing. Esse termo surge substituindo os conceitos de “proletariado” e “classe média”. Os precariados sofrem um forte processo de atomização, vão para um lado e para o outro sem controle do seu destino e com uma baixa segurança e expectativa de solidez do dia de amanhã. A única coisa que os unem é o sofrimento, ou seja, (in)conscientemente todos percebem uma simples equação: eles podem, nós não. Bauman busca a definição do termo no Oxford English Dictionary e nos explica: precário é “ser mantido pelo favor e à disposição de outro; logo incerto”.

A lógica do marketing atual é expandir as necessidades até o nível da oferta e relacioná-las as necessidades de forma distante. Você não precisa, mas o meu argumento fará você entender que precisa, não pelo uso em si, mesmo porque seu uso é limitado ao próximo lançamento, mas pela sua boa convivência narcisista nos ambientes de trabalho, familiar ou de bar.

Donskis afirma com precisão que o gênio saiu da garrafa; torne-se quem você quiser! Bauman alerta para a ambivalência, já tratada em outros momentos, da liberdade x segurança; uma não vive sem a outra e sua conciliação é mera utopia. A falta de confiança gera fronteiras e diásporas, como a relação de Houellebecq (tratada no último capítulo do livro) dentro do romance “A Possibilidade de uma Ilha” sobre a morte de Deus paralela a eliminação dos laços humanos e sociais. Donskis questiona em seguida se “a morte da sociabilidade seria mesmo a morte de Deus?”. Apesar da tese que essa pergunta daria, sabemos que o romance discutido envolve a questão do isolamento total do indivíduo juntamente com o acaso que as inúmeras possibilidades pós-modernas evocam.

Não temos para onde correr e o boleto está vencendo. Não temos pra onde ligar pedindo sua prorrogação. E como diz Bauman, vivemos para comprar o perdão de nossos pecados antes mesmo de cometê-los"...

segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Os limites do conhecimento na globalização...


... "Edgar Morin, sociólogo e filósofo francês, reflete sobre seus interesses enquanto filósofo e sociólogo: os limites do conhecimento e da razão, bem como a relação entre a poesia e a racionalidade... Ainda, questiona a possibilidade da mudança de pensamento em um mundo globalizado e acelerado. É possível sairmos de uma visão fechada em formas particulares para o pensamento complexo, capaz de ver os problemas em sua integralidade? Conferencista do Fronteiras do Pensamento nos anos de 2008 e 2011"...


É preciso educar os educadores...

... "Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo"... assim disse Edgar Morin...

O Globo: Na sua opinião, como seria o modelo ideal de educação?

Edgar Morin: A figura do professor é determinante para a consolidação de um modelo “ideal” de educação. Através da Internet, os alunos podem ter acesso a todo o tipo de conhecimento sem a presença de um professor. Então eu pergunto, o que faz necessária a presença de um professor? Ele deve ser o regente da orquestra, observar o fluxo desses conhecimentos e elucidar as dúvidas dos alunos. Por exemplo, quando um professor passa uma lição a um aluno, que vai buscar uma resposta na Internet, ele deve posteriormente corrigir os erros cometidos, criticar o conteúdo pesquisado.

É preciso desenvolver o senso crítico dos alunos. O papel do professor precisa passar por uma transformação, já que a criança não aprende apenas com os amigos, a família, a escola. Outro ponto importante: é necessário criar meios de transmissão do conhecimento a serviço da curiosidade dos alunos. O modelo de educação, sobretudo, não pode ignorar a curiosidade das crianças.


O Globo: Quais são os maiores problemas do modelo de ensino atual?

Edgar Morin: O modelo de ensino que foi instituído nos países ocidentais é aquele que separa os conhecimentos artificialmente através das disciplinas. E não é o que vemos na natureza. No caso de animais e vegetais, vamos notar que todos os conhecimentos são interligados. E a escola não ensina o que é o conhecimento, ele é apenas transmitido pelos educadores, o que é um reducionismo. O conhecimento complexo evita o erro, que é cometido, por exemplo, quando um aluno escolhe mal a sua carreira. Por isso eu digo que a educação precisa fornecer subsídios ao ser humano, que precisa lutar contra o erro e a ilusão.

O Globo: O senhor pode explicar melhor esse conceito de conhecimento?

Edgar Morin: Vamos pensar em um conhecimento mais simples, a nossa percepção visual. Eu vejo as pessoas que estão comigo, essa visão é uma percepção da realidade, que é uma tradução de todos os estímulos que chegam à nossa retina. Por que essa visão é uma fotografia? As pessoas que estão longe são pequenas, e vice-versa. E essa visão é reconstruída de forma a reconhecermos essa alteração da realidade, já que todas as pessoas apresentam um tamanho similar.

Todo conhecimento é uma tradução, que é seguido de uma reconstrução, e ambos os processos oferecem o risco do erro. Existe outro ponto vital que não é abordado pelo ensino: a compreensão humana. O grande problema da humanidade é que todos nós somos idênticos e diferentes, e precisamos lidar com essas duas ideias que não são compatíveis. A crise no ensino surge por conta da ausência dessas matérias que são importantes ao viver. Ensinamos apenas o aluno a ser um indivíduo adaptado à sociedade, mas ele também precisa se adaptar aos fatos e a si mesmo.

O Globo: O que é a transdisciplinaridade, que defende a unidade do conhecimento?

Edgar Morin: As disciplinas fechadas impedem a compreensão dos problemas do mundo. A transdisciplinaridade, na minha opinião, é o que possibilita, através das disciplinas, a transmissão de uma visão de mundo mais complexa. O meu livro “O homem e a morte” é tipicamente transdisciplinar, pois busco entender as diferentes reações humanas diante da morte através dos conhecimentos da pré-história, da psicologia, da religião. Eu precisei fazer uma viagem por todas as doenças sociais e humanas, e recorri aos saberes de áreas do conhecimento, como psicanálise e biologia.

O Globo: Como a associação entre a razão e a afetividade pode ser aplicada no sistema educacional?

Edgar Morin: É preciso estabelecer um jogo dialético entre razão e emoção. Descobriu-se que a razão pura não existe. Um matemático precisa ter paixão pela matemática. Não podemos abandonar a razão, o sentimento deve ser submetido a um controle racional. O economista, muitas vezes, só trabalha através do cálculo, que é um complemento cego ao sentimento humano. Ao não levar em consideração as emoções dos seres humanos, um economista opera apenas cálculos cegos. Essa postura explica em boa parte a crise econômica que a Europa está vivendo atualmente.

O Globo: A literatura e as artes deveriam ocupar mais espaço no currículo das escolas? Por quê?

Edgar Morin: Para se conhecer o ser humano, é preciso estudar áreas do conhecimento como as ciências sociais, a biologia, a psicologia. Mas a literatura e as artes também são um meio de conhecimento. Os romances retratam o indivíduo na sociedade, seja por meio de Balzac ou Dostoiévski, e transmitem conhecimentos sobre sentimentos, paixões e contradições humanas. A poesia é também importante, nos ajuda a reconhecer e a viver a qualidade poética da vida. As grandes obras de arte, como a música de Beethoven, desenvolvem em nós um sentimento vital, que é a emoção estética, que nos possibilita reconhecer a beleza, a bondade e a harmonia. Literatura e artes não podem ser tratadas no currículo escolar como conhecimento secundário.

O Globo: Qual a sua opinião sobre o sistema brasileiro de ensino?

Edgar Morin: O Brasil é um país extremamente aberto a minhas ideias pedagógicas. Mas, a revolução do seu sistema educacional vai passar pela reforma na formação dos seus educadores. É preciso educar os educadores. Os professores precisam sair de suas disciplinas para dialogar com outros campos de conhecimento. E essa evolução ainda não aconteceu. O professor possui uma missão social, e tanto a opinião pública como o cidadão precisam ter a consciência dessa missão.
 [Leia esta entrevista no site do O Globo e aqui...

Nacionalismo no Mundo: A teoria do dissenso...

... "No seu livro “Hispano-América contra o Ocidente”, o senhor afirma que um dos fatores que explica porque a civilização e o homem ibero-americanos são diferentes dos ocidentais e da sua atual civilização, é que os europeus que chegaram a América eram ainda medievais e, por tanto, anteriores à “Revolução Mundial”. Em que consistiu esta “Revolução Mundial” e quais as suas consequências até os dias atuais?

Falo de Revolução Mundial no mesmo sentido em que o fizeram Christopher Dawson, Hilaire Belloc, Eric Voegelin, Julio Meinvielle, Walter Schubart – no Brasil quem o fez foi Tristão de Athayde (1893-1983) – e tantos outros pensadores não conformistas. A Revolução Mundial começa com a Reforma e a instauração do primado da consciência, continua com a Revolução Francesa e a substituição da filosofia pela ideologia, segue com a Revolução Bolchevique e seus cem milhões de mortos em setenta anos e termina hoje com o Totalitarismo Democrático e a sua ideia de globalização, onde todas as culturas são intercambiáveis para a construção de um monstruoso one world.

Em sua obra o senhor afirma que o homem Ibero-americano é uma síntese entre o europeu católico e medieval e o indígena telúrico. Entretanto, este processo não é uma simples mistura, de maneira que o resultante desta síntese (o homem ibero-americano) é mais do que a simples soma de seus componentes (europeu e indígena). Poderia nos contar um pouco mais a respeito desta síntese? Quais são as principais características desse homem surgido no continente americano?

Bolívar dizia que não era “nem tão espanhol e nem tão índio” e o mesmo podemos dizer de nós mesmos “nem tão espanhóis ou portugueses e nem tão índios”. É por isso que nós constituímos o verdadeiro e genuíno povo originário da América. Essa originalidade e característica tão própria se expressa nos nossos arquétipos nacionais: o “cholo” na Bolívia e Peru, o “montubio” no Equador, o “huaso” no Chile, o “gaucho” na Argentina, o “llanero” na Colômbia e Venezuela, o “charro” para o México, o “ladino” na Guatemala, o “borinqueño” para Porto Rico e São Domingos, etc. No caso do Brasil, que é um continente, possui vários arquétipos, no sul o gaúcho, no nordeste o sertanejo, no sudeste o caboclo, e vários outros.

Nós somos uma cultura de síntese porque convergem em nós várias culturas. Os antropólogos norte-americanos falam em multiculturalismo para referir-se aos povos ibero-americanos, o que é um erro, porque nós somos, verdadeiramente, um interculturalismo.

O senhor escreveu a respeito da importância dos grandes espaços existentes na América na formação do caráter do homem ibero-americano, distinto do europeu que tem relativamente pouco espaço disponível para a sua civilização. Como a grandiosidade da paisagem americana nos ajudou a ser o que somos hoje?

O imenso, o ilimitado, aquilo que o filósofo pré-socrático Anaximandro denominou “to ápeiron”, marcou para sempre o caráter do homem sul- americano, sobretudo no Brasil e na Argentina. “O pampa, disse Drieu la Rochelle viajando com Jorge Luís Borges, é uma vertigem horizontal” e o sertão “sempre uma impressionante lonjura”.

O fato de não ver os limites fez dele um homem naturaliter livre. A solidão da imensidão fez dele um individualista, não da maneira liberal, mas um individualista fraternal, que sempre se conduziu no trato com o outro tendo como referência a ideia de hospitalidade.

Enquanto os espanhóis e portugueses fizeram a opção por uma colonização integrando os povos nativos da América, os ingleses optaram por exterminar os indígenas do novo continente e substituí-la por uma população branca, anglo-saxã e protestante. Como estas diferentes maneiras de colonizar influenciaram o caráter dos povos das duas Américas? É isso que provoca a eterna vontade dos americanos do norte de submeter todo o mundo ao “american way of life”?

Se fosse verdade que o mundo conhecido, desde o surgimento da escrita, passou por quatro éons, que são os grandes períodos de tempo em que podemos dividir as principais linhas da história, podemos dizer que o homem americano do norte encarna o éon prometeico e o ibero-americano o éon gótico-barroco. O primeiro dirige o seu olhar para a dominação da terra e o segundo o seu olhar para as alturas, que tampouco possuem limites. O homem prometeico é o arrogante titã que se rebelou contra os deuses, o astuto usufrutuário da natureza, por meio do uso do fogo. O homem gótico-barroco nas vastas planícies, sem obstáculos, percebe sua pequenez e impotência. Olha o sublime em silêncio e o atrai. Não vai contra o divino, mas se coloca a seu serviço"...

Para uma leitura completa, aqui...

Nem esquerda, nem direita...

Por falta de quaisquer que sejam as condições argumentativas sobre política partidária, esta postagem é apenas uma sugestão de leitura, pois no meu caso estou ainda em busca duma política que esteja para além da direita ou da esquerda, que esteja comprometida com o Brasil ou o Mundo e sua gente sofrida...


... "O lúcido pensador italiano Marcello Veneziani começa um belo artigo sobre o antiglobalismo com a seguinte observação: "Se olharmos bem para eles, os anti-G8 são a esquerda em movimento: anarquistas, marxistas, radicais, católicos rebeldes ou progressistas, pacifistas, verdes, revolucionários. Centros sociais, bandeiras vermelhas. Com o complemento iconográfico de Marcos e do Che Guevara. Imediatamente darás conta de que nenhum deles põe em causa o Dogma Global, a interdependência dos povos e das culturas, o melting pot e a sociedade multirracial, o fim das pátrias. São internacionalistas, humanitários, ecumenistas, globalistas. E a acrescentar a isso: quanto mais extremistas e violentos são, mais internacionalistas e anti-tradicionais se tornam".[1]

Posto isto, a oposição da esquerda à globalização é só uma postura que se esgota numa manifestação. Seattle, Gênova, Nova Iorque, Porto Alegre, e acabou, "o mundo continua" como dizia Discepolin. É que a política do "progressismo", como bem observou o filósofo, também italiano, Massimo Cacciari, ordena os problemas mas não os resolve.[2]

Do mesmo se queixa o sociólogo marxista mais importante da América Latina, Heinz Dieterich Steffan, que num recente artigo refere: "Se a tarefa actual de todo o indivíduo anticapitalista é absolutamente clara: Porque é que a "esquerda" e os seus intelectuais não a assumem? Porque repetem, fórum após fórum, a mesma lengalenga sobre a maldade do neo-liberalismo e se contentam com as suas ritualizadas propostas terapêuticas inspiradas em Keynes, Tobin y Stiglitz? Porque não convertem a realidade capitalista em objeto de transformação anti-sistema, em vez de a manterem como muro de lamentações?".[3]

O fracasso rotundo da esquerda, hoje rebatizada de "progressismo", é que, além de não ter compreendido – deglutido será o termo exato – a derrota do "socialismo real" com a implosão soviética e com a queda do Muro, não reelaborou as suas categorias de leitura, e permanece enclausurada no mundo categorial de Marx, Engels, Lenin, Rosa Luxemburgo e eventualmente Trotsky, fazendo arqueologia política.

O mais significativo do século XX, a escola neo-marxista de Frankfurt, através dos esforços de Adorno, Apel, Cohen e Marcuse, termina com o publicitado Habermas e a sua teoria do consenso (sem se aperceber que o consenso sempre foi o dos poderosos entre si), e os seus discípulos James Bohman e Leo Avritzer com a sua teoria da democracia deliberativa, que como um novo nominalismo pretende resolver as injustiças políticas, econômicas e sociais com palavras. Conversando numa espécie de assembleísmo permanente.

Se a esquerda está liquidada, o que dizer da direita? Pode-se esperar algo dela?

Da direita clássica, tanto do nacionalismo orgânico ou integral ao estilo de Charles Maurras, como do fascista de Mussolini ou do católico de Oliveira Salazar pouco permanece. Só trabalhos de investigação históricos e pequenos grupos políticos sem peso nas suas sociedades respectivas.

Resta então como direita o neoconservadorismo norte-americano e dos governos que lhe são afins. E desta direita liberal, a única que existe com peso político, só se pode esperar que as coisas piorem para a saúde e bem-estar dos povos.

Se isto é assim, denunciamos uma vez mais, de entre as centenas de vezes que o tentamos demonstrar, que a dicotomia esquerda/direita é estreita, para não dizer falsa, assumindo uma leitura adequada da realidade.

Hoje situar-se à esquerda ou à direita é não situar-se, é colocar-se num não-lugar, sobretudo para o pensador (recuso terminantemente o termo intelectual) que pretende elaborar um pensamento crítico. E o único método que hoje pode criar pensamento crítico é a divergência. Divergência não só com o pensamento único e politicamente correto mas também e sobretudo, com a ordem constituída, com o status quo vigente.

A divergência é estruturalmente uma categoria do pensamento popular, tal como o consenso, que como vimos, é uma apropriação da esquerda progressista para alcançar a democracia deliberativa que tem muito de ilustrada, e também, ainda que noutro sentido, propriedade do liberalismo como acordo dos que decidem, dos poderosos (G8, Davos, FMI, Comissão Trilateral, Bilderberg, etc.).

A divergência que se manifesta como negação tem distinto sentido no pensamento popular e no pensamento culto. Neste último, regido pela lógica da afirmação, a negação nega a existência de algo ou alguém, enquanto que no pensamento popular o que se nega não é a existência de algo ou alguém, mas antes a sua vigência. A vigência pode ser entendida como validez, como sentido. A discordância nega o monopólio da produtividade por parte dos grupos ou lobbys, para reservá-la ao povo no seu conjunto, mais além da partidocracia política.

A alternativa hoje é situar-se para além da esquerda e da direita. Consiste em pensar a partir de uma raiz, do nosso genius loci nas palavras de Virgílio. E não uma raiz qualquer, senão a das identidades nacionais, que conformam os conjuntos culturais ou regionais que constituem hoje o mundo. Com isto vamos para além inclusive da idéia de estado-nação, em vias de esgotamento, para submergirmos na idéia política de grande espaço etnocultural.

É a partir destas grandes regiões que é lícito e eficaz posicionar o combate à globalização, ou americanização do mundo. Fazê-lo como pretende o progressismo: a partir do humanismo internacional dos direitos humanos, ou desde o ecumenismo religioso como ingenuamente pretendem alguns cristãos, é fazê-lo a partir de mais um universalismo. Com a agravante que o seu conteúdo encerra um aspecto inverossímil e não eficaz na hora do confronto político.

Todavia este confronto está a dar-se de igual modo, apesar da dificuldade dos pensadores em não poderem entendê-lo ainda, através do surgimento dos diferentes populismos, que não obstante os reparos que apresentam a qualquer espírito crítico, estão modificando, como observa Robert de Herte[4] as categorias de leitura. Assim, a oposição entre burgueses e proletários da esquerda clássica vai sendo substituída pela de povo vs. oligarquias, sobretudo financeiras, sejam de esquerda ou direita, pela de justiça e segurança.

Ora, do ponto de vista da esquerda progressista a crítica à globalização limita-se à não extensão dos benefícios econômicos desta à humanidade, mas apenas a uns poucos, pois a esquerda, pelo seu caráter internacionalista não pode denunciar o efeito destruidor sobre as culturas tradicionais e sobre as identidades dos povos. A sua denúncia transforma-se assim numa reclamação formal para que a globalização esteja unida aos direitos humanos.

Em sentido contrário, é a partir dos movimentos populares que se realiza a oposição real às oligarquias transnacionais.[5] É a partir das tradições nacionais dos povos que melhor se demonstra a oposição à sociedade global sem raízes, a esse imperialismo desterritorializado de que falam Hardt e Negri. É com base na atitude não conformista que se rechaça a imposição de um pensamento único e de uma sociedade uniforme, e se denúncia a globalização como um mal em si mesmo.

O pensamento popular, quando é de fato, parte das suas próprias raízes, não tem um saber livresco ou ilustrado. Pensa a partir de uma tradição, que é a única forma de pensar genuinamente segundo Alasdair MacIntyre[6], dado que "uma tradição viva é uma discussão historicamente desenvolvida e socialmente encarnada". Pelo que se torna impossível aos povos e aos homens que os encarnam situarem-se fora da sua tradição. Quando o fazem desnaturalizam-se, deixam de ser o que são. São já outra coisa.