terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Antropologia Aplicada à educação indígena: o caso da escola “Apurinã”.

                         luta indígena pelo direito à demarcação de suas terras continua em todas as regiões do país, paralela a por assistência médica, pelo fim do preconceito de que são vítimas e pela manutenção de suas culturas e identidades diferenciadas.

                    Concomitante a essas lutas pela cidadania, começaram a se desenvolver trabalhos de educação escolar diferenciada, que têm os membros da comunidade indígena como centro do processo. Este tipo de trabalho veio como uma nova alternativa aos trabalhos em educação tradicionalmente efetuados pela Fundação Nacional do Índio (antigo Serviço de Proteção ao Índio) e por algumas organizações religiosas.
                     É, portanto, nesta linha de preocupação com a autodeterminação da comunidade indígena e com a manutenção de sua identidade étnica, que se iniciou uma experiência visando analisar o desenvolvimento do trabalho de educação escolar indígena na aldeia Camicuã, de língua Apurinã (tronco Arauá), localizada no baixo Purús (Amazonas), como também suas implicações na identidade étnica do grupo.

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II                         A partir de meados do século passado se iniciou a colonização do vale rio Purús. Expedições, compostas principalmente de nordestinos, partiam de Manaus em busca de novas áreas para a extração da seringa. Segundo relatos da época, a área ocupada pelos Apurinã era excelente para este tipo de extrativismo.
                            Os Apurinã à época do contato ocupavam uma área de 300 milhas no Rio Purus. Viviam afastados das margens em casas que eram ocupadas por três ou quatro famílias na época do inverno, e iam para perto do rio no verão, onde cada família fazia um abrigo. Manoel Urbano da Encarnação, conhecido como um dos grandes desbravadores da região e um dos primeiros a se estabelecer na área ocupada por essa nação, contou dezessete aldeias Apurinã no Purús. Castelo Branco comenta o seguinte sobre sua alimentação: “Os de Purús plantavam em pequena escala - mandioca, uaipy, batata, cajá, ananás, pupunha, inhame, mundubi, cana, milho, banana”.(Castelo Branco, 1950:35)
                           Todos os expedicionários são unânimes em afirmar que, apesar de guerreiros entre seus próprios grupos, eles eram “extremamente pacíficos” (Castelo Branco, 1950: 12) com os “brancos”, e desta forma foram de grande ajuda no conhecimento da região, servindo de guia para as expedições.
                        A realidade, no entanto, não era tão harmoniosa como nos parece ao ler os relatos dos viajantes, e logo houve muitas baixas entre os índios, principalmente devido a doenças como sarampo.
                      Alguns grupos contatados passaram a trabalhar na extração da borracha e de outros produtos com valor comercial: “Em alguns lugares os exploradores dos seringais foram bem recebidos como no baixo Acre, entre os Ipurinas, os quais, segundo Newtel Maia, um dos primeiros desbravadores destas selvas, eram pacíficos e se apresentavam aos invasores para com eles trabalharem; tendo sido dizimados pelo sarampo e exterminadas as sobras pelos bolivianos quando se apossaram da região, no fim do século XIX”. (Castelo Branco, 1950: 12)
                         Outros grupos fugiram para o interior da mata: “O sistema de catequese dos primeiros ocupantes contrariando-lhes a índole e obrigando-os ao serviço de caça e pesca, no qual revelavam extraordinária habilidade, e as índias nos trabalhos domésticos e outros inconfessáveis, forçou-os a abandonar suas malocas, à beira dos rios, imigrando para a mata, aonde seriam livres, originando-se destes métodos de tratamento lutas e represálias tremendas”. (Castelo Branco, 1950: 21)
                      No fluxo dos conquistadores vieram os missionários católicos que converteram os índios, embora não de forma total, pois os “nativos” da região adaptaram os novos símbolos e idéias às suas crenças antigas.
                      O contato, as mudanças econômicas, religiosas e sociais tiveram como conseqüência profundas transformações culturais. Alimentos novos, armas de fogo, casas no estilo dos seringueiros, a noção de pecado, a língua portuguesa, tudo isso foi sendo assimilado, ainda que reinterpretado por essa população.
A área indígena na qual estamos trabalhando, onde fica a aldeia Camicuã, surgiu da migração de um grupo que vivia no interior, no “centro”, como eles chamam, para próximo do rio Purús e da cidade de Boca do Acre (AM), onde eles poderiam vender a borracha.
                         Na década de 70 chegaram os fazendeiros ao local, e logo muitas áreas de floresta viraram pasto, entre elas as áreas que tradicionalmente eram ocupadas pelos Apurinã.
                       A comunidade de Camicuã, como todas as aldeias Apurinã da região, partiram, então para assegurar seus direitos. Houve muito conflito, brigas e até mortes na disputa pela terra. Muitas vezes a FUNAI se colocou ao lado do fazendeiro e a delimitação e demarcação das terras foi um processo conflituoso. Num primeiro momento ficou fora da área indígena seringueiras, castanheiras e igarapés, recursos indispensáveis para a manutenção econômica e cultural da aldeia.
                      Passados 150 anos de contato a comunidade luta pela sobrevivência: planta macaxeira e feijão ,alguns pescam, outros compram o peixe na cidade, a caça é rara. Não tem assistência médica na aldeia, apenas uma vez por ano recebem a visita de uma equipe da área de saúde.
                    A religião não é mais a de 100 anos atrás, hoje alguns deles são adeptos do Santo Daime e existe um movimento entre eles para adaptar os rituais religiosos à representação que eles têm hoje de sua “cultura tradicional” ( a idéia de “cultura tradicional” para os membros da comunidade é quase que uma representação de caráter mitológico de como teria sido a vida dos Apurinã antes do contato). Existem também alguns protestantes e católicos.
                      Há muitos casamentos mistos e membros da aldeia vivendo em Boca do Acre, a cidade mais próxima, e também em Rio Branco. Entretanto a aldeia vem crescendo, principalmente devido a migração de parentes vindos de aldeias distantes. O ingresso destes novos membros é uma das causas da sua heterogeneidade da população, pois os que vêm do “centro” conservam mais a “cultura tradicional”, além de falar a língua Apurinã (o que não acontece aos nascidos em Camicuã, que apenas têm alguma noção da língua de seu povo).
III

                      Visto este quadro geral da situação histórica e social da aldeia Camicuã, passaremos agora a dar uma idéia sobre as condições em que se encontrava a educação escolar na época do início do nosso trabalho.
                        A escola funciona de 1a 4 série, sendo que as 3e 4séries são lecionadas em classe multisseriada. Há uma professora, que cursou até a 5série, e que leciona para a 1 série (a escola não tem alfabetização, o ensino se inicia a partir da primeira série). O outro professor terminou o 2 grau e atende às séries restantes.
                        Estes professores nunca tiveram treinamento pedagógico, e se ressentem muito do despreparo. A Prefeitura não dá nenhum apoio às escolas indígenas, a Secretária de Educação nem mesmo conhece as escolas localizadas nas suas áreas. Como conseqüência desse quadro, os professores ficam entregues à sua própria experiência.
                         Em termos de estrutura física, a escola constitui-se em uma casinha de madeira com duas salas e varanda, no estilo dos “brancos” da região. Às vezes eles recebem merenda, e quando recebem na maioria dos casos não gostam do tipo da comida, muito diferente da que eles estão acostumados. Além disso, há o problema de não terem quem cozinhe para os alunos.
                      Em outras comunidades a merenda é feita por algumas voluntárias ou pelas mães dos alunos. O fato de nesta aldeia ninguém se dispor para tal tarefa demonstra o afastamento que há entre escola e comunidade. A escola, apesar de fazer parte do cotidiano das crianças, não é uma instituição integrada aos outros aspectos da vida social do grupo.
                      A maioria dos pais não sabe em que série os filhos estudam. Se os meninos querem deixar de freqüentar a escola, o fazem sem muito problema e são muitas vezes incentivados pelos próprios pais a fazê-lo para que possam se dedicar mais às atividades de agricultura, pesca e caça.
                       Durante as aulas, os próprios alunos são passivos, desatentos e desinteressados, o que é reflexo da qualidade de ensino e a falta de interesse da comunidade pela escola. Esse desinteresse se dá não só como resultado da falta de formação pedagógica do professor, como também pelo modelo de ensino empregado, o qual é baseado na escola do “branco”.
                         Os livros utilizados são os distribuídos pelo Ministério da Educação para todas as escolas do país, e não contemplam as particularidades da vida e da cultura da aldeia. Esse material didático trata na maioria das vezes de realidades completamente diferentes das vivenciadas por eles, tendo como conseqüência a dificuldade na aprendizagem de conteúdos.
                        Não há nada nas aulas que remeta para a cultura deles. Até as datas comemorativas observadas são o Dia-das-Mães, Páscoa, Independência do Brasil, etc., e não os acontecimentos que marcam a cultura e a história do grupo. Na verdade, ele nem mesmo têm o conhecimento de sua própria história, pois os próprios professores estudaram nas escola da cidade onde só se aprende a história oficial do Brasil.
                       Todas as aulas são ministradas em português, pois a maioria dos alunos não sabe falar a língua original de seu povo. Este fato ainda cria um problema a mais para os alunos que nasceram em aldeias mais distantes e que não dominam completamente o português, visto que em suas aldeias de origem eles se comunicavam em          Apurinã. O falar apurinã é desvalorizado tanto na escola como fora dela, e essas crianças têm até vergonha de falar em frente aos outros e serem motivo de risos.
                     Para ilustrar o desinteresse dos alunos pela escola e a falta de valorização dessa instituição na comunidade temos dados referentes ao ano de 1996 no qual havia 32 alunos iniciando na 1série e apenas 2 na 4série.
                      Esse quadro se insere numa realidade mais ampla, em que historicamente a educação escolar indígena no Brasil vem apresentando um caráter assimilacionista. Duas frentes têm trabalhado neste sentido: missões religiosas e agências governamentais.
Desde o princípio da colonização as missões religiosas realizam trabalhos voltados para a educação junto às comunidades indígenas. Na verdade, o objetivo destas missões têm sido até hoje a cristianização e a tentativa de “civilização” destes grupos.
                   As agências governamentais representadas pelo Serviço de Proteção aos Índios , criado no início do século, e pela entidade que o substituiu, a Fundação Nacional do Índio , criada durante o período do governo militar, sempre tiveram um caráter integracionista. Suas práticas tinham como pano de fundo a certeza de que estavam tratando com povos em vias de extinção, visto que seus modos tradicionais de vida seriam incompatíveis com a assim chamada “sociedade brasileira moderna”.
                Atualmente, estas práticas educacionais coexistem com novas práticas que têm um perfil não integracionista, mas caracterizadas pela idéia de que as sociedades indígenas não acabarão, e por isso necessitam se fortalecer, tanto internamente quanto na sua relação com os demais setores da sociedade. Essa outra premissa muda todo o caráter do trabalho em educação escolar, visto que essa nova filosofia de trabalho aposta na coexistência de sociedades e culturas diferenciadas num país que se acredita homogêneo como o Brasil.
                 O trabalho de assessoria a que nos propusemos desenvolver segue esta segunda perspectiva, na qual a proposta é de fortalecimento da identidade étnica desse povo.
                Desde o ano de 1996 mantemos contato com a aldeia de Camicuã. Logo no primeiro contato, o problema da educação escolar foi colocado pelos membros da comunidade, e principalmente pela liderança.         Posteriormente, partindo do principio de que a todo momento os anseios da comunidade devem nos guiar, fizemos um levantamento que incluiu todas as famílias, para conhecermos os principais problemas enfrentados pela comunidade, e nos foi mostrado que as questões econômicas, de saúde e educação escolar eram os pontos que mais preocupavam.
                   Partindo de nossa formação como professores, e acreditando que a implementação de mudanças na educação escolar afetaria diretamente os outros dois níveis, optamos por concentrarmos nosso trabalho nesse campo.
                   A assessoria à escola dessa aldeia Apurinã tem como objetivos a formação dos professores indígenas e a construção de currículos específicos em parceria com os mesmos, através de um acompanhamento periódico das suas atividades.
                   A metodologia do trabalho é baseada nos princípios de Paulo Freire, tanto no que diz respeito a tratar o aluno como sujeito da prática escolar, quanto a valorizar o universo cultural local na escolha de métodos e conteúdos das aulas. Integrado ao trabalho diretamente na escola está o trabalho de pesquisa que iniciamos junto a professores e alunos. Esse trabalho visa levantar informações sobre a cultura tradicional Apurinã, seus mitos, seus cantos, sua história recente e antiga, além de tentar compreender a situação sociocultural e lingüística atual da comunidade, com a preocupação de perceber as forças que atuam contra e a favor da manutenção da sua identidade étnica.

V

                 Uma das maiores preocupações de quem trabalha com educação escolar indígena é quanto à interferência na cultura de seu povo. Ficamos nos perguntando se podemos propor isso ou aquilo ao professor, ou se a implementação de alguma prática pode afetar negativamente sua cultura. Por esse motivo, é necessário que conheçamos bem a relação entre a cultura e a etnicidade nesta aldeia Apurinã.
                   Entendemos cultura como o modo de vida da comunidade, levando em conta o contexto e o processo histórico no qual o grupo está inserido, e etnicidade como o “sentimento” de perecimento a determinado grupo étnico. Estas duas categorias de percepção da realidade social são indissociáveis. A cultura é a base do referencial simbólico que forma a identificação étnica, participando assim do processo de construção e reconstrução da identidade.
                   Passamos, então, a nos perguntar até que ponto um trabalho de assessoria numa escola indígena pode afetar, positiva ou negativamente, a cultura, a organização social, e consequentemente a identidade étnica desse grupo de Apurinã.
                  Partindo deste questionamento podemos elencar alguns problemas específicos que surgem ao se transformar a educação escolar indígena, e através dela aspectos culturais deste povo. A primeira questão que se coloca é sobre o impacto da escrita numa sociedade quase completamente baseada na oralidade. Apesar do intenso contato com as cidades de Boca do Acre e Rio Branco, o seu convívio com a escrita se dá apenas através de cartazes de políticos, bulas de remédios, nomes nas camisas, nas certidões e documentos.
                 Como toda a situação que envolve a implementação de uma escola indígena diferenciada, também este problema da oralidade e da escrita é bastante ambíguo, apontando tanto para soluções quanto para perigos.
                A introdução real da escrita atende a várias necessidades da comunidade, entre elas a de possibilitar um conhecimento maior de outras realidades sociais, e também de reconstruir e perpetuar sua história através da fixação em símbolos gráficos. Por outro lado, essa fixação pode ter conseqüências fortes sobre uma cultura que se baseia numa memória oral e visual muito ricas, modificando assim toda esta forma própria de perceber o mundo.
                  Além disso, o conhecimento oral tem a característica de um processo, ou seja, é algo que não se cristaliza, as histórias vão se modificando conforme o tempo passa e novos fatos vão acontecendo. Já a escrita, fixa, engaiola a idéia que fluía nos ares e nas mentes.
                Outra questão que se coloca nesta experiência é a da recuperação da auto-estima individual e social dos integrantes da comunidade. A introdução de conteúdos relacionados à sabedoria do próprio povo e a utilização de métodos e de uma organização escolar baseada no seu estilo de vida, têm como objetivos resgatar essa auto-estima, este orgulho e a identificação positiva com seu povo.
                A importância deste tipo de filosofia na escola indígena é tanto maior quanto mais vai aumentando o contato com os centros urbanos, e consequentemente cresce a desvalorização de suas particularidades étnicas. A escola deve ajudar a formar uma consciência crítica do índio em relação à sua situação social, cultural e econômica, dando-lhe condições de reinterpretar os códigos que lhes são enviados.
              Por outro lado, a formação dos alunos pode acarretar o surgimento de uma espécie de classe, constituída pelos letrados em oposição aos analfabetos. Temos, portanto, que verificar também que impacto isso pode ter na organização social do grupo, considerando um aumento das diferenciações internas e também a possibilidade do aumento da emigração devido à vontade de adquirir mais conhecimentos ou mesmo pela maior possibilidade de trabalhar fora da aldeia.
              São esses pontos, já detectados, como outros que vão surgindo no decorrer do trabalho, que está nos interessando nesse processo de pesquisa/atuação. Temos, então, como resultados obtidos até o momento: 1) levantamento histórico da comunidade; 2) dados etnográficos coletados em pesquisa de campo; 3) dados referentes à observação do cotidiano escolar.
            O maior conhecimento da organização social, da cultura, das ambições e das transformações efetuadas por essa experiência junto aos professores indígenas, vai possibilitando que, não só possamos apontar algumas idéias em relação ao futuro, como também, até mesmo modificar, dentro do possível, algumas previsões, através da atuação dos professores no sentido de fortalecer a identidade étnica do seu grupo e a sua atuação no âmbito social amazônico e brasileiro.

Relátorio Elaborado (Eu e Célia) para o Departamento de Ciências Socias

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